TCHÉKHOV – O JARDIM DAS CEREJEIRAS
Assim como para o Brasil, o século
XIX para a Rússia foi um século de muitas transformações que, pode-se dizer,
terminou apenas em 1917 com a Revolução. (Às vezes acontece isso, de um século
avançar sobre o outro, ou também o oposto, ser encurtado pelo próximo que já
inicia prematuramente. A história e a vida não seguem exatamente os calendários
criados pelos homens).
O “ottocento” russo foi um período
ainda do explendor da nobreza, de riqueza, dos teatros e dos cafés lotados, dos
passeios na Névski, dos grandes concertos e das grandes óperas, do
florescimento de São Petersburgo e de Moscou. E foi também um século de
gigantes; de Dostoiévski, Púschikin, Tolstói e Gogol na literatura, de
Tchaikóvski, Mussorgski e Glinka na música, entre tantos, tantos outros... De
Diaghilev, Kandinski, Chagal, Block que adentraram o século XX; da fundação da
revista “Mir Skustva” (Mundo das Artes) e do Teatro de Arte de Moscou, de
Stanislávski.
Foi também o século da Guerra da
Criméia, das reformas legislativas, do judiciário e do exército. Foi também o
século da “Grande Guerra Patriótica” (1812) quando os russos vencem Napoleão
que havia invadido o seu território, episódio epicamente retratado na grande
obra de Tolstói “Guerra e Paz” (Vainá e Mir). Sim, na língua russa a palavra “MIR”
significa PAZ e simultaneamente MUNDO.
Em 1861 os servos são libertados (no
Brasil os escravos são libertados em 1888), o que de certa forma foi um golpe
fatal à nobreza tradicional czarista. O país se urbaniza, muitos camponeses vão
para as grandes cidades, os comerciantes se fortalecem e a indústria também. Surgem
diversos bancos e o capital estrangeiro começa a aparecer em abundância.
O velho modo de vida russo, camponês
e arcaico começa a ser suplantado por um modo novo, urbano, arrivista,
cosmopolita, em outras palavras, capitalista. E começam também a surgir as
teorias socialistas de Marx, Bakunin, Lênin, Plekhanov...
A Rússia era (e ainda é) o maior país
do mundo, indo da Finlândia e Polônia ao Alaska e (curioso) chegando até a
Califórnia nos Estados Unidos, e passa a “contar” no tabuleiro geopolítico
europeu.
O Jardim das Cerejeiras:
Na peça “O Jardim das Cerejeiras”
Tchékhov retrata justamente o final do século XIX, onde essas transformações
estão no clímax, através do drama de uma família aristocrática afundada em
dívidas que acaba perdendo em leilão a sua propriedade rural (um cerejal) que
por muitas décadas foi o símbolo de seu prestígio e nobreza;
A propriedade viu passarem por ela
gerações, grandes bailes, saraus, festas, romances e casamentos. O cerejal,
mais que um pomar de cerejeiras destinado a produção e ao comércio representava
uma inesgotável fonte de riqueza e fazia parte do imaginário daquela família
(assim como os casarões das fazendas de café do século XIX brasileiro).
A peça de Tchékhov e seus personagens
retratam este período de transição: há o comerciante recém enriquecido, o
antigo servo libertado, velho e fiel; a família decadente, empobrecida e
instável, o jovem urbano e ambicioso, o burocrata, as amas, as jovens
sonhadoras, entre outros.
Apesar do contexto, não é uma peça
histórica no sentido lato, (não é um documentário histórico), mas é uma
história que reflete dramas humanos de um período de transformações e
incertezas. Mal sabiam o que os esperava no século XX.
O Jardim das Cerejeiras teve sua
primeira montagem em 1904 pelo iluminado Stanislávski e o seu Teatro de Artes
de Moscou e foi um grande sucesso.
Por que “Jardim das Cerejeiras” e não
simplesmente “Cerejal”? A explicação está justamente na sutileza, no simbolismo
do “Jardim” que propõe algo mais que uma plantação para o comércio; remete a um
tempo de idílio, de felicidade, até de ingenuidade.
A peça encerra com a família de malas
prontas despedindo-se da casa grande, das suas paredes, das suas memórias, da
sua nobreza, ao mesmo tempo em que ao fundo já se ouve o som dos machados sobre
o cerejal onde será construída uma vila de veraneio, com cabanas de aluguel
para as novas classes russas.
Tchékhov e Stanislávski, uma dupla
que marcou o teatro russo e mundial.
Anton Tchékhov – O Jardim das Cerejeiras
Tradução de Millôr Fernandes
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