OS FRUTOS
SELVAGENS DA SIBÉRIA
JULIO
PUJOL
O título é lindo. Misterioso. A ideia
é boa: traçar um panorama de um tempo e de um lugar. Mostrar homens, mulheres,
interrogações. Andar por uma terra peculiar e forte. Pela estepe e pela taiga. Escrever
uma obra significante.
“Os Frutos Selvagens da Sibéria” do grande poeta russo Evgueni
Ievtuchenko é um livro que cumpre o proposto ao descrever paisagens da
Rússia profunda, como a aridez escaldante de intermináveis estradas no meio da
estepe ao verão ou o branco da taiga no inverno, com seu vento gelado que chicoteia
o rosto do jovem Serioja e o gosto doce e azedo dos frutos selvagens.
O tempo soviético subjacente é uma
onipresença. Lembra bastante “Os Filhos
da Rua Arbat” de Anatoli Ribakov ao
mostrar personagens comuns sobrevivendo e tentando ser algo nos tempos do
império do sistema... soviético.
Nos “Filhos da Arbat” as paisagens
são diferentes. A famosa rua Arbat, também misteriosa e mística, fica no centro
de Moscou. Os dramas humanos ali vividos e escondidos são essencialmente
urbanos. Mas não menos intensos.
Nos “Frutos da Sibéria” homens e
mulheres urbanos e do campo se encontram e se escondem na solidão das
imensidões.
Dir-se-ia um belo livro, porém falta
nesta obra de Ievtuchenko, apesar das mais de quatrocentas páginas, um toque do
épico de Tolstói e da absoluta profundidade dos heróis de Dostoiévski. E apesar
de ser um relato de personagens reais, ou quase reais, falta também a crueza e
o lirismo dos “Vagabundos” de Gorki.
O livro se constrói como o relato de
várias vidas e experiências em sequência sem uma correlação dramática entre
elas, como se fosse a compilação de algumas novelas em um tomo só, acrescidas
de alguns fatos biográficos do autor (para quem leu sua “Autobiografia
Precoce”).
Os personagens são absolutamente
comuns em seu tempo. E seus dramas também: um amor, um filho, um encontro, um
abandono, uma vida que passa, um arrependimento, uma melancolia... E o sistema
que oprime e cadencia.
Os frutos são homens, são mulheres,
são jovens idealistas, são tarefas históricas a cumprir, são os filhos da
guerra e da paz. E são promessas de futuro em paisagens ermas, tristes e
exuberantes.
Ievtuchenko é sobretudo um poeta, mas
não de prosa. Neste livro, seu grande poema é realmente o título “Os Frutos
Selvagens da Sibéria”. A Sibéria em si é já um poema.
O verdadeiro grande poeta em prosa da
literatura russa é Gorki. Noutro texto podemos discorrer sobre isso.
Neste livro, de 1981, ainda durante a
Guerra Fria, Ievtuchenko faz um mosaico da inexorabilidade do progredir da vida
naqueles tempos. Uma vida que escapa à vontade dos homens, embora construída
por homens, pelas memórias apagadas de um velho, pelas esperanças otimistas de
um jovem do Konsomol, pela resignação de uma mulher.
Um homem é marcado por seu tempo e
por sua terra mesmo quando se deseja universal. Ievtuchenko busca ser universal
neste livro, porém, de fato, “Os Frutos” é um livro profundamente russo; profundamente
soviético. É a reflexão de um homem soviético sobre si mesmo e sobre seu povo.
Seus personagens são russo-soviéticos.
É difícil encontrar o homem universal
em seus personagens como em Dostoiévski e Tchekov onde, ao contrário, eles
abundam.
O livro nos apresenta uma visão “do”
mundo, mas nem tanto uma visão “de” mundo. É o olhar de um homem sobre um tempo.
O seu tempo, o seu transcurso, as suas paisagens internas e externas.
“Os Frutos” tem qualidade, mas lhe
falta intensidade. Falta-lhe aquele vigor que faz com que os homens tomem a
história em suas mãos e a construam. E aí surgem os homens que cumprem suas
tarefas históricas, que respondem ao seu tempo e se resignam a ele.
É um relato simples e despido da
realidade. Quase uma crônica. E aí está o seu valor. Cabe também a um escritor
observar, viver, e registrar o seu tempo e os personagens reais que nele
habitam. E neste sentido a obra corresponde plenamente. Ao ler “Os Frutos”
realmente fazemos uma viagem na qual o autor nos leva pela mão. Sem grandes
juízos, sem dramas, sem grandes reflexões filosóficas.
Escrito entre 1973 e 1981, “Os Frutos
Selvagens da Sibéria” passeiam pela memória do século através dos olhos e das
palavras de seus personagens, homens e mulheres comuns que viveram um tempo
excepcional e novo.
Os frutos são filhos dos revolucionários
de 1917, são soldados da Segunda Guerra, a patriótica, de 1941; festejaram a
vitória de 45; reconstruíam um país destruído ao mesmo tempo que festejavam o “homem
novo” do socialismo. Homem que já nas décadas de 1950 e 1960 chegava ao espaço
anunciando um futuro radiante para a pátria soviética e para toda a humanidade.
Mas os “frutos da Sibéria” eram
profundamente humanos; humanos soviéticos, frutos, herdeiros e portadores de
uma filosofia popular profunda que impregna a Rússia desde sempre, que nas suas
entranhas virou “russismo”, algo que só para os russos tem um sentido
traduzível.
Essa geração pós-guerra tinha muitas
dúvidas e algumas certezas. A dor da morte, o heroísmo, a destruição e a
reconstrução, cadenciam a alma russa do século vinte.
O nascimento do pensamento
coletivista decretou o fim do indivíduo. Mas o indivíduo teima em sobreviver,
meio silenciosamente, e observa as contradições de si mesmo e do seu tempo.
A sensibilidade do poeta Ievtuchenko
capta e registra todos esses silêncios, todos as filosofias, inusitadas
filosofias: “espantado de manter um tal
discurso, no fundo da taiga siberiana, num barco que cheirava a pez, a lona de
barraca úmida e a peixe seco...”
Talvez a Sibéria seja, no fundo, com
seus frutos, a grande reserva da filosofia popular russa, o “russismo” que já
deu muito a toda a humanidade.
OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA
434 p.
434 p.
EVGUENI IEVTUCHENKO
RIO DE JANEIRO – NOVA FRONTEIRA, 1984