Julio Pujol
A primeira verdadeira biografia que li na vida foi Eu (Eu mesmo) do poeta russo Wladimir Maikovski; uma autobiografia. Hoje acredito que uma verdadeira biografia só pode ser uma autobiografia.
Vinte anos depois termino de ler
“Autobiografia Precoce” do também poeta russo Evgueni Evtuchenko. Novamente uma
verdadeira biografia. Novamente uma autobiografia (embora precoce).
Nascido em julho de 1933 numa
longínqua e pequena estação ferroviária da Sibéria chamada Zima, perto do Lago
Baikal, Evtuchenko viveu os duros anos iniciais da Rússia Revolucionária.
Cresceu no período stalinista e assistia as paradas militares na Praça Vermelha
de Moscou ao mesmo tempo em que perdia os avós para a repressão política do
regime. Eram tempos do “culto a personalidade” do líder.
Tinha oito anos quando, em 1941, os
nazistas invadiram a Rússia. Viveu as durezas da guerra; viu jovens soldados
siberianos casando-se e no dia seguinte partindo para o front. Pôde ver também
os prisioneiros alemães derrotados desfilando humilhados pela Praça Vermelha.
De todo este período ficou sua grande convicção pela paz.
Por opção e rebeldia saiu de casa e
viveu nas ruas. Ali aprendeu a enfrentar e resolver sozinho os seus problemas.
Aprendeu a superar o medo e vencer as situações mais difíceis. Assim aprendeu
também a defender a sua poesia e as suas ideias no futuro.
“Do meu banco, debaixo do retrato de
Stalin, o olhar fixo através da janela, eu sonhava em escapar para uma outra
escola, a escola da grande cidade que cheira a neve e a cigarros, a gasolina
dos automóveis e ao quente pirojki dos vendedores das ruas.”
Saiu a trabalhar como aprendiz numa
expedição geológica nas estepes do Kazakistão. Ali aprimorou seu conhecimento
sobre o homem, matéria-prima de sua poesia. Conviveu com camponeses, soldados,
trabalhadores, técnicos. Descobriu a ternura feminina. Conheceu também homens
maus que, de resto, não abalaram a sua convicção na humanidade.
“A partir desta data soube que não há
nada no mundo de mais precioso que a inimitável, magnífica e comovedora ternura
feminina. Soube que, de todos os valores duvidosos que o mundo reconhece, a
ternura é a única que na realidade é eterna.”
Voltando à cidade, jogou futebol em
Moscou e daí extraiu também muitas lições. Começou a publicar seus versos num
jornal esportivo (o único que os aceitaram na época). Conheceu amigos como
Tarassov e Barlas que o ajudaram a refletir sobre poesia. Entendeu que através
da poesia precisava dizer algo, ou, ter algo a dizer.
Entrou em crise quando percebeu que
seus poemas apesar de belos e bem construídos não diziam nada do que
necessitava o homem real soviético do seu tempo.
“Mas suponhamos que o mundo reconheça o seu
talento. Vão esperar que você lhes diga coisas importantes. O que lhes dirá,
então, você?” Perguntou o amigo Barlas.
Da crise começou a nascer o poeta
maduro. Evgueni começa a fazer poemas mais intimistas, mais reais. Mas nos anos
1950 esse tipo de poesia não era bem vista pelas autoridades, que preferiam a
arte exaltando o regime e as qualidades do homem soviético.
“Mas era necessário lutar para fazer
triunfar essa concepção, pois nossos críticos literários defendiam na época, a
teoria da ‘ausência de conflitos no mundo socialista’. Tentavam demonstrar que,
na vida soviética, o conflito não podia mais existir entre os maus e os bons,
mas somente entre os bons e os melhores.”
A crítica ao período stalinista nasce
de forma contundente em sua obra. Evtuchenko acreditava nos valores do
socialismo e do comunismo como valores elevados do humanismo, mas que foram
distorcidos e degenerados por arrivistas de plantão.
“O stalinismo é a teoria pela qual os
homens são vistos como simples engrenagens mecânicas de uma grande empresa
industrial. Aplicada à vida essa teoria produziu resultados aterradores.”
“Assim, o aço tornou-se o herói
principal de múltiplos romances. Outros foram consagrados à construção de casas
ou ao semeio do trigo. Os seres humanos eram personagens secundários nessas
obras. Aliás, nem mesmo viviam. Eram acessórios que permitiam valorizar melhor
‘o trabalho’”.
Em 1953 morre Stalin. E logo depois
seus crimes são denunciados e vem a público. O país busca encontrar seu
caminho. Muitos cidadãos entram em crise ao perceber que tinham dedicado suas
vidas há um regime criminoso e opressor. Os problemas do país começam a
aparecer. A Rússia questiona seu futuro.
“Começaram a chegar, dos longínquos
campos de concentração siberianos, os primeiros reabilitados. Traziam consigo o
relato comovedor de seus infortúnios pessoais e as provas, em medidas
gigantescas, das injustiças cometidas na época stalinista.
O povo russo queria que lhe falassem
de maneira franca e séria a respeito de suas perspectivas de vida. E ‘vida’, no
seu entender e sentir, nunca se limitara a questões de comida e roupa. ‘Vida’,
para os russos, é acima de tudo uma questão de futuro.”
Um novo tempo estava por nascer, uma
Primavera Russa, segundo o autor. E novas responsabilidades se colocavam sobre
os ombros dos poetas. E de Evtuchenko: compreender o tempo atual e jogar alguma
luz sobre ele e sobre o futuro. Os poetas são muito considerados na Rússia,
mesmo nos dias atuais.
“Para os leitores ocidentais, a
afirmação pode parecer pretenciosa, mas é necessário compreender que o poeta,
na Rússia, desempenha um papel diferente dos poetas de outros países. Na língua
russa, a palavra poeta é quase sinônimo de combatente. Em nenhuma outra nação
do mundo a poesia tem uma tradição tão ligada a política. Não é por acaso que
os russos consideraram sempre seus poetas como guias espirituais, como os
‘depositários da verdade’.”
Compreende Evtuchenko seu dever de
poeta e cidadão de falar para os jovens do futuro. Neste período conhece a
poetiza Bella Akhmadulina, que logo vem a ser sua esposa. Bella faz parte de uma
seleta de grandes poetizas russas como Akhmatova e Coetaeva.
Em 1955 organiza-se na Rússia o “Dia
da Poesia” que se torna uma tradição no país. Milhares de pessoas lotam os
salões e as praças para ouvir seus poetas. Nos anos seguintes, na década de
1960, Evtuchenko continua com sua missão de falar aos jovens; de lutar pela
liberdade de expressão e pelo resgate dos valores humanistas do socialismo. Foi
considerado no Ocidente um dissidente, mas sempre amou seu país e acreditou no
futuro do socialismo.
Conheceu Pasternak, e relata no livro
o seu encontro com este também grande da literatura e da poesia russa, autor de
Doutro Jivago.
Lendo “Autobiografia Precoce”, (publicado
pela primeira vez em 1963, quando o autor tinha então 30 anos) é possível
compreender o itinerário do poeta até encontrar a sua grande poesia. Uma poesia
marcada pela história de seu país, pelo seu povo, por sua terra, por suas
imensidões. E é possível conhecer “por dentro” o sentimento do povo russo
diante dos grandes acontecimentos protagonizados por ele mesmo no intenso
século XX. Com uma sensibilidade de Poeta.
“Nós construímos sozinhos o nosso
futuro. Privamo-nos de tudo, sofremos, cometemos erros, mas sozinhos o
construímos.
Tenho orgulho de não ser um simples
observador, mas de participar na luta heroica do meu povo pelo seu futuro.
Penso sempre que tenho tudo diante de mim, assim como meu povo tem tudo diante
dele.”
Li, de Evtuchenko, também, Ardabiola.
Daí nasceu meu poema “Ardabiola Brasileira”. Sim, no Brasil também temos
Ardabiolas.
Evtuchenko ainda vive.