CONTOS DE SEBASTOPOL (Liev Tolstoi)
Julio Pujol
Sebastopol fica na Criméia. A Criméia
fica no Mar Negro, no sul da Ucrânia. A Ucrânia fica no leste da Europa. A
Criméia é Russa. Sebastopol é Russa. A Rússia nasceu na Ucrânia. A Ucrânia já
foi Russa. São povos irmãos.
O Mar Negro divide, ou une, a Europa
e a Ásia. Também ao sul está a Turquia. E na Idade Média estava o Império
Bisantino. Bisâncio era a “segunda Roma”. O comércio do Oriente e do Ocidente
passava por ali.
A região do Mar Negro, e nele a
Criméia, é milenarmente um ponto de muitos interesses e muitas disputas. É
também uma região multicultural.
A Criméia, vista de longe, é um
mistério. Um local meio “Mil e uma Noites”. Um poema. Sebastopol é uma bela
cidade fundada pelo Império Russo em 1783.
Tolstói é russo, de Isnaia Poliana
(1828-1910). Junto com Dostoiévski e Puchkin é um dos maiores escritores russos
e universais de todos os tempos. Escreveu o épico “Guerra e Paz” e o magistral “Anna
Karenina”, além de inúmeros contos e novelas. É uma figura controversa. Mesmo
para os russos. Nascido de uma família aristocrática e rica pregava a
simplicidade da vida do camponês russo.
Tolstói era um homem que queria
compreender a vida e o ser humano. E sua literatura reflete isso. É profundamente
russa e ao mesmo tempo profundamente universal. Quando Tolstói busca a alma
russa encontra, no fundo, a alma humana, o olhar humano, a dor humana, o
silêncio humano.
Quando jovem vivia uma vida vazia e
descompromissada como tantos de sua classe. Mas não encontrava satisfação
naquele tipo de vida. Seu espírito era inquieto.
Decide ingressar no exército de seu
país e parte para a guerra no Cáucaso (1851). Imaginava que em uma situação
extrema e profundamente real poderia compreender melhor a subjetividade humana.
Começa aí a nascer o escritor reflexivo.
Depois, entre 1854-1855 o oficial
Liev Tolstói vive a realidade da Guerra da Criméia onde vê o heroísmo e o
sofrimento cru de seu povo. Isso o toca de forma irrevogável.
A Criméia sempre foi uma zona de interesse
dos russos que precisam de um acesso seguro ao Mediterrâneo e à Europa.
Nesta época a Criméia estava sob o domínio
dos turcos. Os russos tentam retomá-la. Inglaterra e França ficam com os turcos
para frear a expansão dos russos. Em Sebastopol os franceses atacam os russos.
E é a resistência russa em Sebastopol que é matéria dos “Contos”.
Ao final a Rússia perde a guerra e
muitos dos seus valorosos filhos.
Os Contos:
“Contos de Sebastopol” foram escritos ainda durante o período da guerra e
publicados em São Petersburgo, então capital do Império Russo, com o conflito
em curso.
Com seus relatos Tolstói funciona
quase como um correspondente de guerra moderno, pois retratava para a sociedade
russa as imagens explícitas da frente de batalha. A sociedade de então tinha
uma imagem romantizada dos heróis russos condecorados e reconhecidos por seus
serviços à Pátria.
“Contos de Sebastopol” é composto por
três contos que descrevem três momentos diferentes da cidade e do conflito.
“Sebastopol em Dezembro”
No primeiro conto Tolstói nos
apresenta uma cidade ainda iluminada, alegre, tocando a sua vida com uma certa
normalidade. A guerra se concentrava nos bastiões de defesa da cidade. O
movimento de soldados e oficiais provocava uma certa excitação à vida urbana. A
paisagem, apesar da guerra, guardava seu encanto:
“A aurora apenas começa a tingir o
horizonte sobre o monte Sapun; a superfície azul escura do mar, já
desembaraçada da escuridão da noite, aguarda o primeiro raio de sol para
cintilar seu brilho alegre. Da enseada o ar sobe frio e brumoso; não há neve, o
solo está totalmente negro, mas o frio gélido matinal golpeia o rosto e estala
sob os pés, e o rumor longínquo e incessante do mar, vez por outra perturbado
pelos tiros retumbantes em Sebastopol, rompe o silêncio da manhã. Nas
embarcações a ampulheta das oito horas bate surdamente.
Em Siévernaia as ocupações diurnas
pouco a pouco começam a substituir a tranquilidade da noite...”
Mas a tranquilidade começa a
desaparecer quando o autor nos leva para dentro do hospital que recebe os
feridos da guerra. A descrição, através dos olhos de um oficial, do horror de
jovens soldados mutilados, sofrendo e morrendo, de médicos e enfermeiras esgotados,
do cheiro de sangue e de morte, nos mostram a crueza e a estupidez da guerra. E
mesmo em meio a um cenário devastador é possível perceber o surgimento da
nobreza e da coragem do homem russo. Do homem.
Do hospital o autor nos leva pela
primeira vez à frente de batalha. Ali também a morte, e a convivência com ela,
é uma rotina.
E encerra: “Por muito tempo essa epopeia de
Sebastopol deixará na Rússia marcas grandiosas em que o herói é o povo russo”.
“Sebastopol em Maio”
Neste segundo conto, o autor
apresenta uma Sebastopol já não tão alegre e segura de si. Uma Sebastopol já
atingida pela guerra; preocupada.
Tolstói, através dos olhos do oficial
Mikhailóv, mergulha de forma mais profunda na subjetividade humana e analisa
sentimentos secretos como o medo, a vaidade, a honra, a cupidez, o heroísmo, a
alegria, a indiferença, a dúvida...
Aos nossos olhos vai descortinando a
alma humana diante da maior das adversidades: a derrota, a humilhação e a
morte. Neste conto se abre todo o horror e toda a irracionalidade da guerra.
Cristãos russos e cristãos franceses matando-se uns aos outros: “E a
questão, não decidida pelos diplomatas, decide-se menos ainda pela pólvora e
pelo sangue.”
“Das duas uma: ou a guerra é loucura
ou as pessoas, por praticarem essa loucura, não são absolutamente seres
racionais como costumamos pensar sabe-se lá por quê.”
Os franceses iniciam um violento
ataque. Centenas de soldados vão morrendo e amontoando-se misturados aos
destroços dos canhões e carroças.
Na trégua para recolher os corpos,
russos e franceses ficam frente a frente: “E essas pessoas, cristãos que professam a
mesma grande lei do amor e do sacrifício, olhando para o que fizeram, não
cairão subitamente de joelhos arrependidas, ante Aquele que, tendo lhes dado a
vida, colocou na alma de cada um, junto com o horror da morte, o amor ao bem e
ao belo, nem se abraçarão como irmãos, vertendo lágrimas de júbilo e
felicidade. Não!”
Diante da morte o homem quer
encontrar um sentido para sua existência (ou para o fim dela). E esse sentido
são valores: honra, camaradagem, amor à Pátria...
“O herói do meu conto, aquele que amo
com todas as forças da minha alma, que tentei forjar em toda a sua beleza e que
sempre foi, é e será belo – é a verdade.”
“Sebastopol em Agosto”
O tenente Kosieltsov regressa a
frente de batalha depois de se recuperar de um ferimento e reencontra os
antigos companheiros. Ao mesmo tempo também chega ao campo seu irmão mais novo,
Valodia, que está se integrando às tropas.
Neste conto Tolstói descreve a queda
de Sebastopol sob chuva de balas de canhão e a retirada dos soldados russos,
derrotados e humilhados. E a sempre presente, morte. Os sonhos de glória
transformam-se em desenfreada retirada. É a realidade da guerra.
“À saída da ponte quase todos os
soldados tiravam o boné e persignavam-se. Mas a essas impressões sucedeu-se um
sentimento penoso, mais pungente e profundo: algo semelhante a remorso,
vergonha e cólera. Quase todo soldado, ao olhar deste lado de Siévernaia para a
Sebastopol abandonada, suspirava com indizível amargura no coração e ameaçava os
inimigos.”
“Contos de Sebastopol” é uma
descrição da guerra e ao mesmo tempo da subjetividade humana diante de uma
situação limite . É, de fato, um canto à paz. Mal podia imaginar Tolstói
quantos infortúnios ainda estariam por atingir sua pátria no século seguintel.
Em 2018 penso na existência humana ao
longo dos séculos e percebo que ainda somos primários; Do mesmo modo que
avançamos em instituições, diplomacia, convivialidade, produzimos mais armas do
que em qualquer outro período da história humana. Devíamos estar discutindo
quantos arsenais destruir.
Tolstói nos ajuda a pensar o quanto é sagrada a vida humana. O quanto é
bela a vida; quanto podemos construir juntos. Poderíamos nos desafiar para
compreender até que ponto a inteligência humana pode chegar.
Contos de Sebastopol
Liev Tolstói
Ed. Hedra. São Paulo, 2013. 160p