NO DEGRAU DE OURO
Acabo de terminar de ler “No Degrau de Ouro” da autora russa
Tatiana Tolstaya (1951).
Tolstaya (feminino de Tolstói), nasceu na Rússia Soviética em
1951, na cidade de Leningrado, hoje São Petersburgo. É descendente distante de
dois famosos escritores russos: Lev Tolstói (1828-1910), um dos maiores
escritores da língua russa e um dos maiores do mundo, autor de “Ana Karenina” e
do épico “Guerra e Paz” e de Aleksei Tolstói (1883-1945), seu avô paterno.
“No Degrau de Ouro” é o nome do livro e o nome também de um
dos contos.
Escrever sobre um livro de contos é um desafio por si só.
Fica a interrogação: escrever sobre cada conto individualmente apresentando-os
ou analisar a obra como um todo?
Ler Tatyana e seu Degrau de Ouro não é difícil. É um pouco
estranho. O difícil é escrever sobre o lido. Seus contos são um tanto inclassificáveis,
atemporais, embora se reconheça um tempo neles, tipo União Soviética pós-guerra
e pré-perestroika e embora sejam também universais no sentido da
geografia.
Poderiam ser ambientados em qualquer subúrbio deprimido de qualquer grande cidade do mundo.
Poderiam ser ambientados em qualquer subúrbio deprimido de qualquer grande cidade do mundo.
Mas transcorrem nas ruas e apartamentos de Moscou e
Leningrado. Às vezes no interior e no passado um pouco mais longínquo.
Escrever sobre o indescritível também é um desafio.
“No degrau de ouro” contém doze contos. Cada um deles é um
todo. Mas ao findar o livro percebe-se uma unidade um tanto impressionante. Seu
ponto forte, de fato, são as personagens, sua absoluta previsibilidade e, ao
mesmo tempo, sua profunda complexidade humana.
Os enredos dos contos vão da mesma forma, são absolutamente
previsíveis e ao mesmo tempo com uma profunda complexidade que ao final
surpreende.
No decorrer da história a previsibilidade das personagens vai
se emaranhando com a previsibilidade do enredo e quando você se dá conta o que
está emaranhada é a complexidade da personagem com a complexidade do enredo.
Ao terminar um conto você está em silêncio, meio confuso, sem
entender direito o que aconteceu. Sem querer partir para o próximo, porque
parece que aquele conto findo continua dentro de você e aquele personagem é seu
amigo íntimo.
Esqueça Tchekov e seus cenários bucólicos e personagens
concretos, reais. Esqueça a profundidade exaustivamente construída por
Dostoiévski. Nos contos de Tolstaya me parece surgir de quando em quando a figura
de Gogol numa cena patética e até meio surreal. As vezes um salto no tempo para
mostrar que um dia, uma vez, houve vida, ou poderia ter havido, naquele vazio.
Em algumas cenas a autora puxa a corda num golpe rápido e
repõe as coisas. Dá um giro e segue em frente. É engraçado, te deixa meio
patético, surpreende e não volta para explicar. Ao final talvez se entenda.
Parece que a unidade dos contos é essa. Personagens que
refletem, ou vivem mesmo sem refletir, o vazio de suas existências. O conto
termina, o ônibus segue, levando em seu interior um ninguém para lugar nenhum.
São homens que poderiam ter sido outra coisa e num determinado momento de suas
vidas escolheram sem pensar. E agora não há mais volta. São mulheres que não
tiveram chance nenhuma. Que quase amaram um dia. São crianças que foram órfãos,
da guerra e da vida. Mentirosos, inocentes, deprimidos, anônimos.
BEM ME QUER – MAL ME
QUER
“Na pracinha, que Marivana chamava de “bulevar”, pálidas meninas leningradenses cavoucam na escurecida areia outonal, escutando as conversas dos adultos. Marivana, tendo feito rápida amizade com alguma velhota de chapeuzinho, tira da bolsa fotografias velhas e duras: ela e o tio encostados ao piano, e atrás uma cachoeira...”
“Na pracinha, que Marivana chamava de “bulevar”, pálidas meninas leningradenses cavoucam na escurecida areia outonal, escutando as conversas dos adultos. Marivana, tendo feito rápida amizade com alguma velhota de chapeuzinho, tira da bolsa fotografias velhas e duras: ela e o tio encostados ao piano, e atrás uma cachoeira...”
RIO OKERVIL
Um homem velho e solitário, fã de uma cantora famosa do passado finalmente decide ir conhece-la. Pega um ônibus e vai à sua casa no outro lado da cidade. Se decepciona. Ela morre para ele, como uma velha gorda e decadente.
Um homem velho e solitário, fã de uma cantora famosa do passado finalmente decide ir conhece-la. Pega um ônibus e vai à sua casa no outro lado da cidade. Se decepciona. Ela morre para ele, como uma velha gorda e decadente.
SHURA QUERIDA
Mulher visita velha de 84 anos – que deixou um amor e a vida no passado. Morre no final.
Mulher visita velha de 84 anos – que deixou um amor e a vida no passado. Morre no final.
“O que posso fazer com tudo isso? Voltar-me e ir embora.
Calor. O vento tange a poeira. E Alexandra Ernestovna, a Shura querida, real
como uma miragem, coroada de frutas de madeira, flutua sorrindo pela trêmula
viela, para atrás da esquina, para o sul, para o incrivelmente distante radioso
sul, para a gare perdida, flutua, derrete-se, e se dissolve no calor do
meio-dia.”
NO DEGRAU DE OURO
“No princípio era o jardim. A infância era o jardim. Sem começo nem fim, sem limites ou cercas, de farfalhares e rumores, dourado ao sol, verde-claro à sombra, de mil pavimentos, desde as urzes até o cume dos pinheiros; ao sul, o poço com os sapos; ao norte, as rosas brancas e os cogumelos...”
“No princípio era o jardim. A infância era o jardim. Sem começo nem fim, sem limites ou cercas, de farfalhares e rumores, dourado ao sol, verde-claro à sombra, de mil pavimentos, desde as urzes até o cume dos pinheiros; ao sul, o poço com os sapos; ao norte, as rosas brancas e os cogumelos...”
FOGO E POEIRA
Num apartamento, Rima, Pipka, Fedia, Danilo. O futuro não chegava. A felicidade não chegava. As mudanças não aconteciam. E Rima revia onde errou...
Num apartamento, Rima, Pipka, Fedia, Danilo. O futuro não chegava. A felicidade não chegava. As mudanças não aconteciam. E Rima revia onde errou...
“Os visitantes me invejam, sim, meus queridos, invejem-me,
uma felicidade enorme me aguarda no futuro, qual é ela, eu não digo, eu mesma
não sei, só que as vozes me sussurram: espera, espera...”
UMA FOLHA EM BRANCO
Um homem maduro. Angustiado. Tem mulher. Tem amante, que no início o faz pensar que vive, mas logo cansa. Um filho doente. Um amigo. Alguém para quem pode contar sua angustia. Sugere uma operação para tirar a angústia da vida.
Um homem maduro. Angustiado. Tem mulher. Tem amante, que no início o faz pensar que vive, mas logo cansa. Um filho doente. Um amigo. Alguém para quem pode contar sua angustia. Sugere uma operação para tirar a angústia da vida.
“- Eu não entendo – dizia o amigo – por que você cria tamanho
caso? Todo mundo tem mais ou menos os mesmos problemas, o que é que tem isso?
Vamos vivendo conforme dá.
- Mas vê se entende – Ignatiev mostrava o peito – é o
Vivente, o que está vivo, ele dói!
- Que bobo você é – o amigo palitava os dentes com um
fósforo. – Justo porque está vivo é que dói. O que é que você queria?
Julio Pujol
Abril de 2020
Tolstaya, Tatiana. No
Degrau de Ouro (Contos). Trad. Tatiana Belinsky. Cia. Das Letras. São Paulo.
1990.