TCHEKOV – Чехов
Enquanto lá fora a chuva forte lava as calçadas e escorre
pelos bueiros da cidade, levando consigo um pouco de melancolia, leio um
pequeno conto de Tchekov. A rigor, quase todos os contos de Tchekov são
pequenos, e profundos.
Depois de, talvez, dois anos, visito meu próprio blog “Toda
Rússia”, este, onde publicava resenhas de alguns livros e filmes russos. Leio
algumas destas resenhas: Ievtuchenko, Tchekov, Nabokov... Decido voltar a
escrever. E decido presentear uma menina, pré-adolescente, com um Tchekov. Me
parece uma boa porta de entrada para a compreensão da complexidade humana. Ao
menos para se saber o quanto o humano é complexo, profundo, diverso e... igual.
Através da abertura da alma russa, siberiana, das estepes,
dos pequenos escritórios insalubres, das dachas e das isbás, das cozinhas
enfumaçadas, do samovar e dos chás, Tchekov toca toda a alma humana. É uma boa
estrada. Quem conhece a alma russa, conhece a alma humana.
Hoje, fins de maio de 2024, a Rússia está em guerra. Jovens russos
e ucranianos se enfrentam nos campos, nas neves e nas trincheiras e, sem saber,
são protagonistas de um novo ordenamento mundial, que está em curso, nestes
tempos. Também seria interessante refletir sobre a relação destes povos com a
guerra. Para nós, brasileiros, é incompreensível, mas, para eles, tem uma
lógica. Isso seria outro texto, uma outra reflexão.
Mas a pátria de Púchkin, que deu nascimento a gigantes como
Tolstói, Dostoiévski, e também Tchekov, que primeiro chegou ao cosmos, com
Gagarin, não é só guerra. É complexa para poucas linhas. Como a alma humana.
Tchekov também nos apresenta essa pátria, complexa e
profunda, gigante e mesquinha, rica e miserável, do nobre e do mujique,
decadente e de vanguarda, luminosa e deprimida, que troca o chá pela vodca, num
átimo.
Na riqueza e diversidade dos personagens, de um pequeno livro
com alguns poucos contos, penso que a menina poderá começar a compreender o
arco de uma existência, e de suas múltiplas estradas: de uma criança feliz à um
velho burocrata, de um jovem casal que inicia a vida à um velho advogado que
cometeu seus erros no passado e agora não espera mais nada, nem mesmo o perdão,
e não tem arrependimentos. De um casal que bebe chá na cozinha de sua dacha, e
também não tem esperanças, à um jovem oficial, orgulhoso, que tem um mundo pela
frente. De uma jovem moça, “batida e pisada”, no fundo de uma aldeia esquecida
na imensidão quase desértica, à jovem princesa nos salões de Petersburgo. Do já
maduro médico, que cura a si próprio com vodca, ao cocheiro que só conversa com
seu cavalo. Do tio Vânia, àquela família que perdeu tudo e vê o mundo se
transformando aos seus olhos, ao som do serrote sobre as cerejeiras. Do homem
sentado preguiçosamente numa estação, esperando o trem chegar e vendo a vida passar,
escaldante como o verão, suado e modorrento. Dos atores no palco, das cortinas
se abrindo, à um jovem voluntarista e tolo.
Tchekov é um universo. Pela sua lente podemos ver, quase, o
mundo todo, o homem todo.
Neste tempo de tablets e smarts, procurar a alma humana
escondida em muitos personagens, nos resgata um mundo. Um mundo em que somos
algo, mais que um número, mais que um dado. Somos um fragmento do Ser, que
tautológicamente está em nós.
Precisamos de tempo, de imensidões. Precisamos pensar. E nisto
a Rússia, te Tchekov, é muito rica. Por isso deu, e dá, ao mundo, muitos
faróis.
E dessas imensidões, internas e externas, eternas, e desse
tempo que passa e às vezes corre, pode nascer um homem. Ou uma mulher.
Julio Pujol
Maio de 2024