sexta-feira, 24 de maio de 2024

TCHEKOV EM 2024

 


TCHEKOV – Чехов

Enquanto lá fora a chuva forte lava as calçadas e escorre pelos bueiros da cidade, levando consigo um pouco de melancolia, leio um pequeno conto de Tchekov. A rigor, quase todos os contos de Tchekov são pequenos, e profundos.

Depois de, talvez, dois anos, visito meu próprio blog “Toda Rússia”, este, onde publicava resenhas de alguns livros e filmes russos. Leio algumas destas resenhas: Ievtuchenko, Tchekov, Nabokov... Decido voltar a escrever. E decido presentear uma menina, pré-adolescente, com um Tchekov. Me parece uma boa porta de entrada para a compreensão da complexidade humana. Ao menos para se saber o quanto o humano é complexo, profundo, diverso e... igual.

Através da abertura da alma russa, siberiana, das estepes, dos pequenos escritórios insalubres, das dachas e das isbás, das cozinhas enfumaçadas, do samovar e dos chás, Tchekov toca toda a alma humana. É uma boa estrada. Quem conhece a alma russa, conhece a alma humana.

Hoje, fins de maio de 2024, a Rússia está em guerra. Jovens russos e ucranianos se enfrentam nos campos, nas neves e nas trincheiras e, sem saber, são protagonistas de um novo ordenamento mundial, que está em curso, nestes tempos. Também seria interessante refletir sobre a relação destes povos com a guerra. Para nós, brasileiros, é incompreensível, mas, para eles, tem uma lógica. Isso seria outro texto, uma outra reflexão.

Mas a pátria de Púchkin, que deu nascimento a gigantes como Tolstói, Dostoiévski, e também Tchekov, que primeiro chegou ao cosmos, com Gagarin, não é só guerra. É complexa para poucas linhas. Como a alma humana.

Tchekov também nos apresenta essa pátria, complexa e profunda, gigante e mesquinha, rica e miserável, do nobre e do mujique, decadente e de vanguarda, luminosa e deprimida, que troca o chá pela vodca, num átimo.

Na riqueza e diversidade dos personagens, de um pequeno livro com alguns poucos contos, penso que a menina poderá começar a compreender o arco de uma existência, e de suas múltiplas estradas: de uma criança feliz à um velho burocrata, de um jovem casal que inicia a vida à um velho advogado que cometeu seus erros no passado e agora não espera mais nada, nem mesmo o perdão, e não tem arrependimentos. De um casal que bebe chá na cozinha de sua dacha, e também não tem esperanças, à um jovem oficial, orgulhoso, que tem um mundo pela frente. De uma jovem moça, “batida e pisada”, no fundo de uma aldeia esquecida na imensidão quase desértica, à jovem princesa nos salões de Petersburgo. Do já maduro médico, que cura a si próprio com vodca, ao cocheiro que só conversa com seu cavalo. Do tio Vânia, àquela família que perdeu tudo e vê o mundo se transformando aos seus olhos, ao som do serrote sobre as cerejeiras. Do homem sentado preguiçosamente numa estação, esperando o trem chegar e vendo a vida passar, escaldante como o verão, suado e modorrento. Dos atores no palco, das cortinas se abrindo, à um jovem voluntarista e tolo.

Tchekov é um universo. Pela sua lente podemos ver, quase, o mundo todo, o homem todo.

Neste tempo de tablets e smarts, procurar a alma humana escondida em muitos personagens, nos resgata um mundo. Um mundo em que somos algo, mais que um número, mais que um dado. Somos um fragmento do Ser, que tautológicamente está em nós.

Precisamos de tempo, de imensidões. Precisamos pensar. E nisto a Rússia, te Tchekov, é muito rica. Por isso deu, e dá, ao mundo, muitos faróis.

E dessas imensidões, internas e externas, eternas, e desse tempo que passa e às vezes corre, pode nascer um homem. Ou uma mulher.

 


Julio Pujol

Maio de 2024

 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

No Degrau de Ouro - Contos


NO DEGRAU DE OURO


Acabo de terminar de ler “No Degrau de Ouro” da autora russa Tatiana Tolstaya (1951).

Tolstaya (feminino de Tolstói), nasceu na Rússia Soviética em 1951, na cidade de Leningrado, hoje São Petersburgo. É descendente distante de dois famosos escritores russos: Lev Tolstói (1828-1910), um dos maiores escritores da língua russa e um dos maiores do mundo, autor de “Ana Karenina” e do épico “Guerra e Paz” e de Aleksei Tolstói (1883-1945), seu avô paterno.

“No Degrau de Ouro” é o nome do livro e o nome também de um dos contos.
Escrever sobre um livro de contos é um desafio por si só. Fica a interrogação: escrever sobre cada conto individualmente apresentando-os ou analisar a obra como um todo?

Ler Tatyana e seu Degrau de Ouro não é difícil. É um pouco estranho. O difícil é escrever sobre o lido. Seus contos são um tanto inclassificáveis, atemporais, embora se reconheça um tempo neles, tipo União Soviética pós-guerra e pré-perestroika e embora sejam também universais no sentido da geografia.

Poderiam ser ambientados em qualquer subúrbio deprimido de qualquer grande cidade do mundo.

Mas transcorrem nas ruas e apartamentos de Moscou e Leningrado. Às vezes no interior e no passado um pouco mais longínquo.

Escrever sobre o indescritível também é um desafio.

“No degrau de ouro” contém doze contos. Cada um deles é um todo. Mas ao findar o livro percebe-se uma unidade um tanto impressionante. Seu ponto forte, de fato, são as personagens, sua absoluta previsibilidade e, ao mesmo tempo, sua profunda complexidade humana.

Os enredos dos contos vão da mesma forma, são absolutamente previsíveis e ao mesmo tempo com uma profunda complexidade que ao final surpreende.

No decorrer da história a previsibilidade das personagens vai se emaranhando com a previsibilidade do enredo e quando você se dá conta o que está emaranhada é a complexidade da personagem com a complexidade do enredo.

Ao terminar um conto você está em silêncio, meio confuso, sem entender direito o que aconteceu. Sem querer partir para o próximo, porque parece que aquele conto findo continua dentro de você e aquele personagem é seu amigo íntimo.

Esqueça Tchekov e seus cenários bucólicos e personagens concretos, reais. Esqueça a profundidade exaustivamente construída por Dostoiévski. Nos contos de Tolstaya me parece surgir de quando em quando a figura de Gogol numa cena patética e até meio surreal. As vezes um salto no tempo para mostrar que um dia, uma vez, houve vida, ou poderia ter havido, naquele vazio.

Em algumas cenas a autora puxa a corda num golpe rápido e repõe as coisas. Dá um giro e segue em frente. É engraçado, te deixa meio patético, surpreende e não volta para explicar. Ao final talvez se entenda.

Parece que a unidade dos contos é essa. Personagens que refletem, ou vivem mesmo sem refletir, o vazio de suas existências. O conto termina, o ônibus segue, levando em seu interior um ninguém para lugar nenhum. São homens que poderiam ter sido outra coisa e num determinado momento de suas vidas escolheram sem pensar. E agora não há mais volta. São mulheres que não tiveram chance nenhuma. Que quase amaram um dia. São crianças que foram órfãos, da guerra e da vida. Mentirosos, inocentes, deprimidos, anônimos.

BEM ME QUER – MAL ME QUER
“Na pracinha, que Marivana chamava de “bulevar”, pálidas meninas leningradenses cavoucam na escurecida areia outonal, escutando as conversas dos adultos. Marivana, tendo feito rápida amizade com alguma velhota de chapeuzinho, tira da bolsa fotografias velhas e duras: ela e o tio encostados ao piano, e atrás uma cachoeira...”

RIO OKERVIL
Um homem velho e solitário, fã de uma cantora famosa do passado finalmente decide ir conhece-la. Pega um ônibus e vai à sua casa no outro lado da cidade. Se decepciona. Ela morre para ele, como uma velha gorda e decadente.

SHURA QUERIDA
Mulher visita velha de 84 anos – que deixou um amor e a vida no passado. Morre no final.
“O que posso fazer com tudo isso? Voltar-me e ir embora. Calor. O vento tange a poeira. E Alexandra Ernestovna, a Shura querida, real como uma miragem, coroada de frutas de madeira, flutua sorrindo pela trêmula viela, para atrás da esquina, para o sul, para o incrivelmente distante radioso sul, para a gare perdida, flutua, derrete-se, e se dissolve no calor do meio-dia.”

NO DEGRAU DE OURO
“No princípio era o jardim. A infância era o jardim. Sem começo nem fim, sem limites ou cercas, de farfalhares e rumores, dourado ao sol, verde-claro à sombra, de mil pavimentos, desde as urzes até o cume dos pinheiros; ao sul, o poço com os sapos; ao norte, as rosas brancas e os cogumelos...”

FOGO E POEIRA
Num apartamento, Rima, Pipka, Fedia, Danilo. O futuro não chegava. A felicidade não chegava. As mudanças não aconteciam. E Rima revia onde errou...
“Os visitantes me invejam, sim, meus queridos, invejem-me, uma felicidade enorme me aguarda no futuro, qual é ela, eu não digo, eu mesma não sei, só que as vozes me sussurram: espera, espera...”

UMA FOLHA EM BRANCO
Um homem maduro. Angustiado. Tem mulher. Tem amante, que no início o faz pensar que vive, mas logo cansa. Um filho doente. Um amigo. Alguém para quem pode contar sua angustia. Sugere uma operação para tirar a angústia da vida.

“- Eu não entendo – dizia o amigo – por que você cria tamanho caso? Todo mundo tem mais ou menos os mesmos problemas, o que é que tem isso? Vamos vivendo conforme dá.
- Mas vê se entende – Ignatiev mostrava o peito – é o Vivente, o que está vivo, ele dói!
- Que bobo você é – o amigo palitava os dentes com um fósforo. – Justo porque está vivo é que dói. O que é que você queria?


Julio Pujol
Abril de 2020

Tolstaya, Tatiana. No Degrau de Ouro (Contos). Trad. Tatiana Belinsky. Cia. Das Letras. São Paulo. 1990.










quinta-feira, 31 de maio de 2018

Contos de Sebastopol


CONTOS DE SEBASTOPOL (Liev Tolstoi)
 Julio Pujol
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Sebastopol fica na Criméia. A Criméia fica no Mar Negro, no sul da Ucrânia. A Ucrânia fica no leste da Europa. A Criméia é Russa. Sebastopol é Russa. A Rússia nasceu na Ucrânia. A Ucrânia já foi Russa. São povos irmãos.
O Mar Negro divide, ou une, a Europa e a Ásia. Também ao sul está a Turquia. E na Idade Média estava o Império Bisantino. Bisâncio era a “segunda Roma”. O comércio do Oriente e do Ocidente passava por ali.
A região do Mar Negro, e nele a Criméia, é milenarmente um ponto de muitos interesses e muitas disputas. É também uma região multicultural.
A Criméia, vista de longe, é um mistério. Um local meio “Mil e uma Noites”. Um poema. Sebastopol é uma bela cidade fundada pelo Império Russo em 1783.
Tolstói é russo, de Isnaia Poliana (1828-1910). Junto com Dostoiévski e Puchkin é um dos maiores escritores russos e universais de todos os tempos. Escreveu o épico “Guerra e Paz” e o magistral “Anna Karenina”, além de inúmeros contos e novelas. É uma figura controversa. Mesmo para os russos. Nascido de uma família aristocrática e rica pregava a simplicidade da vida do camponês russo.
Tolstói era um homem que queria compreender a vida e o ser humano. E sua literatura reflete isso. É profundamente russa e ao mesmo tempo profundamente universal. Quando Tolstói busca a alma russa encontra, no fundo, a alma humana, o olhar humano, a dor humana, o silêncio humano.
Quando jovem vivia uma vida vazia e descompromissada como tantos de sua classe. Mas não encontrava satisfação naquele tipo de vida. Seu espírito era inquieto.
Decide ingressar no exército de seu país e parte para a guerra no Cáucaso (1851). Imaginava que em uma situação extrema e profundamente real poderia compreender melhor a subjetividade humana. Começa aí a nascer o escritor reflexivo.
Depois, entre 1854-1855 o oficial Liev Tolstói vive a realidade da Guerra da Criméia onde vê o heroísmo e o sofrimento cru de seu povo. Isso o toca de forma irrevogável.
A Criméia sempre foi uma zona de interesse dos russos que precisam de um acesso seguro ao Mediterrâneo e à Europa.
Nesta época a Criméia estava sob o domínio dos turcos. Os russos tentam retomá-la. Inglaterra e França ficam com os turcos para frear a expansão dos russos. Em Sebastopol os franceses atacam os russos. E é a resistência russa em Sebastopol que é matéria dos “Contos”.
Ao final a Rússia perde a guerra e muitos dos seus valorosos filhos.
Os Contos:
“Contos de Sebastopol” foram escritos ainda durante o período da guerra e publicados em São Petersburgo, então capital do Império Russo, com o conflito em curso.
Com seus relatos Tolstói funciona quase como um correspondente de guerra moderno, pois retratava para a sociedade russa as imagens explícitas da frente de batalha. A sociedade de então tinha uma imagem romantizada dos heróis russos condecorados e reconhecidos por seus serviços à Pátria.
“Contos de Sebastopol” é composto por três contos que descrevem três momentos diferentes da cidade e do conflito.
“Sebastopol em Dezembro”
No primeiro conto Tolstói nos apresenta uma cidade ainda iluminada, alegre, tocando a sua vida com uma certa normalidade. A guerra se concentrava nos bastiões de defesa da cidade. O movimento de soldados e oficiais provocava uma certa excitação à vida urbana. A paisagem, apesar da guerra, guardava seu encanto:
“A aurora apenas começa a tingir o horizonte sobre o monte Sapun; a superfície azul escura do mar, já desembaraçada da escuridão da noite, aguarda o primeiro raio de sol para cintilar seu brilho alegre. Da enseada o ar sobe frio e brumoso; não há neve, o solo está totalmente negro, mas o frio gélido matinal golpeia o rosto e estala sob os pés, e o rumor longínquo e incessante do mar, vez por outra perturbado pelos tiros retumbantes em Sebastopol, rompe o silêncio da manhã. Nas embarcações a ampulheta das oito horas bate surdamente.
Em Siévernaia as ocupações diurnas pouco a pouco começam a substituir a tranquilidade da noite...”
Mas a tranquilidade começa a desaparecer quando o autor nos leva para dentro do hospital que recebe os feridos da guerra. A descrição, através dos olhos de um oficial, do horror de jovens soldados mutilados, sofrendo e morrendo, de médicos e enfermeiras esgotados, do cheiro de sangue e de morte, nos mostram a crueza e a estupidez da guerra. E mesmo em meio a um cenário devastador é possível perceber o surgimento da nobreza e da coragem do homem russo. Do homem.
Do hospital o autor nos leva pela primeira vez à frente de batalha. Ali também a morte, e a convivência com ela, é uma rotina.
E encerra: “Por muito tempo essa epopeia de Sebastopol deixará na Rússia marcas grandiosas em que o herói é o povo russo”.
“Sebastopol em Maio”
Neste segundo conto, o autor apresenta uma Sebastopol já não tão alegre e segura de si. Uma Sebastopol já atingida pela guerra; preocupada.
Tolstói, através dos olhos do oficial Mikhailóv, mergulha de forma mais profunda na subjetividade humana e analisa sentimentos secretos como o medo, a vaidade, a honra, a cupidez, o heroísmo, a alegria, a indiferença, a dúvida...
Aos nossos olhos vai descortinando a alma humana diante da maior das adversidades: a derrota, a humilhação e a morte. Neste conto se abre todo o horror e toda a irracionalidade da guerra. Cristãos russos e cristãos franceses matando-se uns aos outros: “E a questão, não decidida pelos diplomatas, decide-se menos ainda pela pólvora e pelo sangue.”
“Das duas uma: ou a guerra é loucura ou as pessoas, por praticarem essa loucura, não são absolutamente seres racionais como costumamos pensar sabe-se lá por quê.”
Os franceses iniciam um violento ataque. Centenas de soldados vão morrendo e amontoando-se misturados aos destroços dos canhões e carroças.
Na trégua para recolher os corpos, russos e franceses ficam frente a frente: “E essas pessoas, cristãos que professam a mesma grande lei do amor e do sacrifício, olhando para o que fizeram, não cairão subitamente de joelhos arrependidas, ante Aquele que, tendo lhes dado a vida, colocou na alma de cada um, junto com o horror da morte, o amor ao bem e ao belo, nem se abraçarão como irmãos, vertendo lágrimas de júbilo e felicidade. Não!”
Diante da morte o homem quer encontrar um sentido para sua existência (ou para o fim dela). E esse sentido são valores: honra, camaradagem, amor à Pátria...
“O herói do meu conto, aquele que amo com todas as forças da minha alma, que tentei forjar em toda a sua beleza e que sempre foi, é e será belo – é a verdade.”

“Sebastopol em Agosto”
O tenente Kosieltsov regressa a frente de batalha depois de se recuperar de um ferimento e reencontra os antigos companheiros. Ao mesmo tempo também chega ao campo seu irmão mais novo, Valodia, que está se integrando às tropas.
Neste conto Tolstói descreve a queda de Sebastopol sob chuva de balas de canhão e a retirada dos soldados russos, derrotados e humilhados. E a sempre presente, morte. Os sonhos de glória transformam-se em desenfreada retirada. É a realidade da guerra.
“À saída da ponte quase todos os soldados tiravam o boné e persignavam-se. Mas a essas impressões sucedeu-se um sentimento penoso, mais pungente e profundo: algo semelhante a remorso, vergonha e cólera. Quase todo soldado, ao olhar deste lado de Siévernaia para a Sebastopol abandonada, suspirava com indizível amargura no coração e ameaçava os inimigos.”
“Contos de Sebastopol” é uma descrição da guerra e ao mesmo tempo da subjetividade humana diante de uma situação limite . É, de fato, um canto à paz. Mal podia imaginar Tolstói quantos infortúnios ainda estariam por atingir sua pátria no século seguintel.
Em 2018 penso na existência humana ao longo dos séculos e percebo que ainda somos primários; Do mesmo modo que avançamos em instituições, diplomacia, convivialidade, produzimos mais armas do que em qualquer outro período da história humana. Devíamos estar discutindo quantos arsenais destruir.
Tolstói nos ajuda a pensar o  quanto é sagrada a vida humana. O quanto é bela a vida; quanto podemos construir juntos. Poderíamos nos desafiar para compreender até que ponto a inteligência humana pode chegar.

Contos de Sebastopol
Liev Tolstói
Ed. Hedra. São Paulo, 2013. 160p






quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA




OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA

JULIO PUJOL


O título é lindo. Misterioso. A ideia é boa: traçar um panorama de um tempo e de um lugar. Mostrar homens, mulheres, interrogações. Andar por uma terra peculiar e forte. Pela estepe e pela taiga. Escrever uma obra significante.
“Os Frutos Selvagens da Sibéria” do grande poeta russo Evgueni Ievtuchenko é um livro que cumpre o proposto ao descrever paisagens da Rússia profunda, como a aridez escaldante de intermináveis estradas no meio da estepe ao verão ou o branco da taiga no inverno, com seu vento gelado que chicoteia o rosto do jovem Serioja e o gosto doce e azedo dos frutos selvagens.
O tempo soviético subjacente é uma onipresença. Lembra bastante “Os Filhos da Rua Arbat” de Anatoli Ribakov ao mostrar personagens comuns sobrevivendo e tentando ser algo nos tempos do império do sistema... soviético.
Nos “Filhos da Arbat” as paisagens são diferentes. A famosa rua Arbat, também misteriosa e mística, fica no centro de Moscou. Os dramas humanos ali vividos e escondidos são essencialmente urbanos. Mas não menos intensos.
Nos “Frutos da Sibéria” homens e mulheres urbanos e do campo se encontram e se escondem na solidão das imensidões.
Dir-se-ia um belo livro, porém falta nesta obra de Ievtuchenko, apesar das mais de quatrocentas páginas, um toque do épico de Tolstói e da absoluta profundidade dos heróis de Dostoiévski. E apesar de ser um relato de personagens reais, ou quase reais, falta também a crueza e o lirismo dos “Vagabundos” de Gorki.
O livro se constrói como o relato de várias vidas e experiências em sequência sem uma correlação dramática entre elas, como se fosse a compilação de algumas novelas em um tomo só, acrescidas de alguns fatos biográficos do autor (para quem leu sua “Autobiografia Precoce”).
Os personagens são absolutamente comuns em seu tempo. E seus dramas também: um amor, um filho, um encontro, um abandono, uma vida que passa, um arrependimento, uma melancolia... E o sistema que oprime e cadencia.
Os frutos são homens, são mulheres, são jovens idealistas, são tarefas históricas a cumprir, são os filhos da guerra e da paz. E são promessas de futuro em paisagens ermas, tristes e exuberantes. 
Ievtuchenko é sobretudo um poeta, mas não de prosa. Neste livro, seu grande poema é realmente o título “Os Frutos Selvagens da Sibéria”. A Sibéria em si é já um poema.
O verdadeiro grande poeta em prosa da literatura russa é Gorki. Noutro texto podemos discorrer sobre isso.
Neste livro, de 1981, ainda durante a Guerra Fria, Ievtuchenko faz um mosaico da inexorabilidade do progredir da vida naqueles tempos. Uma vida que escapa à vontade dos homens, embora construída por homens, pelas memórias apagadas de um velho, pelas esperanças otimistas de um jovem do Konsomol, pela resignação de uma mulher.
Um homem é marcado por seu tempo e por sua terra mesmo quando se deseja universal. Ievtuchenko busca ser universal neste livro, porém, de fato, “Os Frutos” é um livro profundamente russo; profundamente soviético. É a reflexão de um homem soviético sobre si mesmo e sobre seu povo. Seus personagens são russo-soviéticos.
É difícil encontrar o homem universal em seus personagens como em Dostoiévski e Tchekov onde, ao contrário, eles abundam.
O livro nos apresenta uma visão “do” mundo, mas nem tanto uma visão “de” mundo. É o olhar de um homem sobre um tempo. O seu tempo, o seu transcurso, as suas paisagens internas e externas.
“Os Frutos” tem qualidade, mas lhe falta intensidade. Falta-lhe aquele vigor que faz com que os homens tomem a história em suas mãos e a construam. E aí surgem os homens que cumprem suas tarefas históricas, que respondem ao seu tempo e se resignam a ele.
É um relato simples e despido da realidade. Quase uma crônica. E aí está o seu valor. Cabe também a um escritor observar, viver, e registrar o seu tempo e os personagens reais que nele habitam. E neste sentido a obra corresponde plenamente. Ao ler “Os Frutos” realmente fazemos uma viagem na qual o autor nos leva pela mão. Sem grandes juízos, sem dramas, sem grandes reflexões filosóficas.
Escrito entre 1973 e 1981, “Os Frutos Selvagens da Sibéria” passeiam pela memória do século através dos olhos e das palavras de seus personagens, homens e mulheres comuns que viveram um tempo excepcional e novo.
Os frutos são filhos dos revolucionários de 1917, são soldados da Segunda Guerra, a patriótica, de 1941; festejaram a vitória de 45; reconstruíam um país destruído ao mesmo tempo que festejavam o “homem novo” do socialismo. Homem que já nas décadas de 1950 e 1960 chegava ao espaço anunciando um futuro radiante para a pátria soviética e para toda a humanidade.
Mas os “frutos da Sibéria” eram profundamente humanos; humanos soviéticos, frutos, herdeiros e portadores de uma filosofia popular profunda que impregna a Rússia desde sempre, que nas suas entranhas virou “russismo”, algo que só para os russos tem um sentido traduzível.
Essa geração pós-guerra tinha muitas dúvidas e algumas certezas. A dor da morte, o heroísmo, a destruição e a reconstrução, cadenciam a alma russa do século vinte.
O nascimento do pensamento coletivista decretou o fim do indivíduo. Mas o indivíduo teima em sobreviver, meio silenciosamente, e observa as contradições de si mesmo e do seu tempo.
A sensibilidade do poeta Ievtuchenko capta e registra todos esses silêncios, todos as filosofias, inusitadas filosofias: “espantado de manter um tal discurso, no fundo da taiga siberiana, num barco que cheirava a pez, a lona de barraca úmida e a peixe seco...”
Talvez a Sibéria seja, no fundo, com seus frutos, a grande reserva da filosofia popular russa, o “russismo” que já deu muito a toda a humanidade.



OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA
434 p.
EVGUENI IEVTUCHENKO
RIO DE JANEIRO – NOVA FRONTEIRA, 1984


Outubro (ou nada) de 2017