CONTOS DE KOLIMÁ
Contos de Kolimá – Varlan Chalámov (1907-1982). Editora 34, São Paulo. 2015.
Contos de Kolimá – Varlan Chalámov (1907-1982). Editora 34, São Paulo.
2015.
Julio Pujol
Contos de Kolimá, de Varlan Chalámov, é um dos livros de uma
obra maior, de seis volumes, intitulada também ‘Contos de Kolimá’. Este é o
primeiro dos seis. Aqui, Chalámov descreve um pouco do que viveu e viu nos anos
em que passou preso no Campo de Kolimá, uma das mais terríveis prisões
stalinistas da União Soviética, na Sibéria, próximo ao rio de mesmo nome.
Em Kolimá as temperaturas chegavam facilmente aos trinta, e
até cinquenta graus negativos no inverno; no verão aos dez graus negativos.
Para lá, nos anos trinta-quarenta, eram enviados aqueles presos políticos
condenados como ‘inimigos do povo’, e por atividades ‘contrarevolucionárias’,
por questionarem o ‘poder soviético’, por ‘sabotagem’, etc. Chalámov, que
passou quase vinte anos preso em campos (de trabalho) soviéticos, esteve em
kolimá.
Em 1917 a Rússia protagonizou a primeira grande Revolução
Socialista da humanidade. Uma revolução que anunciava um mundo novo e um homem
novo, sem as mazelas do ‘velho’ sistema capitalista.
Cercada pelo ocidente, em guerra civil, com epidemias de fome
e tifo, os primeiros anos do novo estado foram muito difíceis. Assim foi se
constituindo também um serviço de inteligência e repressão aos
contrarrevolucionários. Esse serviço foi se agigantando ao longo das próximas
décadas. Derrotado o regime imperial czarista, era necessário também
transformar suas estruturas, e nesta tarefa, não cabiam oposições. Era a
Revolução em ato.
Os campos de trabalhos forçados, o desterro, a prisão e o
exílio nas imensidões geladas da Sibéria e de outros sítios, fazem parte da
história política da Rússia. Em seu “Memórias da Casa dos Mortos”, Dostoiévski
já descrevia, no século XIX, a vida em um destes campos onde esteve preso
durante o período czarista.
A Revolução de dezessete, que prometia um mundo novo, e um
homem novo, acabou mantendo a prática dos Campos para punir crimes contra o
Estado, e mesmo para crimes comuns. O regime socialista, particularmente no
período stalinista, elevou geometricamente a política dos Campos, seja em
número, seja em crueldade. De fato, instalou-se na Rússia, então União
Soviética, o que Soljenitsin chamou de ‘O Arquipélago Gulag’, um conjunto, um
sistema de Campos, em escala industrial, alimentados pelas cidades, por
militares e também por trabalhadores rurais, que consumiu milhões de vidas. Os
prisioneiros eram levados por dez, quinze, e até vinte anos, e obrigados a
trabalhar quatorze ou mais horas por dia, quase sem folga, em condições
sub-humanas. Milhões nunca voltaram. Era praticamente um regime de trabalho
escravo, contra o próprio povo.
Kolimá:
Kolimá era o pior dos campos. Localizado na Sibéria, no
extremo-oriente, onde, no inverno, as temperaturas chegam a trinta, cinquenta e
até sessenta graus negativos. O trabalho lá era nas minas de ouro e carvão, e
na construção de estradas, a principal delas conhecida como “A Estrada dos
Ossos”.
O trabalho em Kolimá era nessas
condições, com três dias de folga no mês, quatorze a dezesseis horas diárias,
com frio, vento, neve, e até com chuva, ao ar livre ou dentro das minas, onde a
água congelava. Os homens, mal vestidos, com os pés congelados, sofrendo com o
frio constante, seja quando trabalhavam, seja quando se recolhiam para dormir,
em alojamentos precários, com aquecimento precário, mal alimentados com uma
sopa rala, um mingau e umas migalhas de pão. Por anos...
Varlam:
Chalámov, com alguns intervalos,
ficou nos Campos quase vinte anos, nove deles em Kolimá. Depois saiu, e levou
mais vinte anos escrevendo e organizando suas memórias, os ‘Contos de Kolimá’.
Julgava ser importante registrar e contar essa página da história da
humanidade, que, juntamente com os Campos de concentração nazistas, considerava
os piores terrores da história humana, que, a partir deles, o mundo não poderia
caminhar como até então havia caminhado, com esperanças e fantasias.
Os Contos:
Solenitsin, no seu ‘Arquipélago Gulag’, se notabilizou por
fazer a grande crítica política de um sistema que, deliberadamente prendia e
escravizava o próprio povo, submetendo-o a imensa crueldade, respaldado por
enormes farsas judiciais e por um grande aparato repressivo, onipresente,
diante de uma sociedade que se calou, e mesmo, o apoiava.
Chalámov vai por outro caminho em ‘Contos de Kolimá’; faz uma
pungente crítica humana. Afirma que, depois dos Campos, a humanidade não
poderia ser mais a mesma. O que o homem fez contra o homem havia atingido o
máximo da desumanização, pensada e possível.
Nos Contos, propõe uma nova forma de escrever, rompendo com a
tradição – gigante – da literatura russa. Propõe que, depois de Kolimá e de
Auschwitz, toda a escrita deveria ser um relato pessoal do vivido. Não havia
mais espaço e tempo para romantismos.
Descrever os ‘Contos de Kolimá’ é muito difícil. Como
explicar que o autor escreveu de modo suave, sem grandes adjetivações,
abordando a subjetividade humana, com uma leve ironia, e ao mesmo tempo,
narrando fatos os mais crus possíveis do ponto em que a degradação humana pode,
ou pôde, chegar. Fatos crus e cruéis.
Todo o livro descreve as condições da
prisão, ou do exílio, nos Campos, na taiga de Kolimá, e seus personagens. Fala
dos homens obrigados a viver naquelas condições, mal alimentados, com uma fome
permanente, com feridas na pele provocadas pelo frio e pelo congelamento, e
seus carrascos. É um testemunho do que o sistema é capaz quando sobrepõe a
humanidade de cada um de nós. E mostra também o estado de desumanização em que
se transformaram muitos homens, para sobreviver naquelas condições.
Resenha
Sempre a resenha de um livro de contos nos impõe uma decisão:
apresentar o livro em seu conjunto, ou cada um dos contos de modo independente,
mesmo levando em conta que faz parte de uma composição maior.
‘Contos de Kolimá’ não nos apresenta este impasse. Embora
composto por vários contos independentes, o fio condutor é um só. É
praticamente uma autobiografia do autor, de seu exílio interno, é sobre as
cenas e episódios que viu e que vivenciou, ou seja, o cenário é sempre o mesmo,
o personagem principal também, e o argumento geral também é o mesmo.
Concluir a leitura, e falamos apenas do primeiro volume, nos
provoca um silêncio, quase um vazio, menos que uma reflexão, porque não há
discurso, não há causa, não há bandeira. É apenas uma descrição do que a
humanidade fez consigo mesma. E nós somos humanos.
A sensação, em verdade, é de que somos todos culpados,
primeiro, por não saber, e depois, por não querer saber. Mas não é uma culpa
política ou racional; não, é uma culpa por ser humano, e por compreender que
outros humanos fizeram aquilo, esticaram a corda ao limite. A humanidade do
nosso tempo fez Kolimá efez Auschwitz, e Varlam, tranquilamente, nos pega pela
mão e nos leva lá dentro. Sem julgamentos, sem raivas, sem adjetivações, sem
filosofias ou conclusões. Apenas nos mostra. Ou conta.
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