quinta-feira, 22 de maio de 2025

Contos de Kolimá

 CONTOS DE KOLIMÁ

Julio Pujol

Contos de Kolimá – Varlan Chalámov (1907-1982). Editora 34, São Paulo. 2015.



Contos de Kolimá – Varlan Chalámov (1907-1982). Editora 34, São Paulo. 2015.

Julio Pujol

Contos de Kolimá, de Varlan Chalámov, é um dos livros de uma obra maior, de seis volumes, intitulada também ‘Contos de Kolimá’. Este é o primeiro dos seis. Aqui, Chalámov descreve um pouco do que viveu e viu nos anos em que passou preso no Campo de Kolimá, uma das mais terríveis prisões stalinistas da União Soviética, na Sibéria, próximo ao rio de mesmo nome.

Em Kolimá as temperaturas chegavam facilmente aos trinta, e até cinquenta graus negativos no inverno; no verão aos dez graus negativos. Para lá, nos anos trinta-quarenta, eram enviados aqueles presos políticos condenados como ‘inimigos do povo’, e por atividades ‘contrarevolucionárias’, por questionarem o ‘poder soviético’, por ‘sabotagem’, etc. Chalámov, que passou quase vinte anos preso em campos (de trabalho) soviéticos, esteve em kolimá.

Em 1917 a Rússia protagonizou a primeira grande Revolução Socialista da humanidade. Uma revolução que anunciava um mundo novo e um homem novo, sem as mazelas do ‘velho’ sistema capitalista.

Cercada pelo ocidente, em guerra civil, com epidemias de fome e tifo, os primeiros anos do novo estado foram muito difíceis. Assim foi se constituindo também um serviço de inteligência e repressão aos contrarrevolucionários. Esse serviço foi se agigantando ao longo das próximas décadas. Derrotado o regime imperial czarista, era necessário também transformar suas estruturas, e nesta tarefa, não cabiam oposições. Era a Revolução em ato.

Os campos de trabalhos forçados, o desterro, a prisão e o exílio nas imensidões geladas da Sibéria e de outros sítios, fazem parte da história política da Rússia. Em seu “Memórias da Casa dos Mortos”, Dostoiévski já descrevia, no século XIX, a vida em um destes campos onde esteve preso durante o período czarista.

A Revolução de dezessete, que prometia um mundo novo, e um homem novo, acabou mantendo a prática dos Campos para punir crimes contra o Estado, e mesmo para crimes comuns. O regime socialista, particularmente no período stalinista, elevou geometricamente a política dos Campos, seja em número, seja em crueldade. De fato, instalou-se na Rússia, então União Soviética, o que Soljenitsin chamou de ‘O Arquipélago Gulag’, um conjunto, um sistema de Campos, em escala industrial, alimentados pelas cidades, por militares e também por trabalhadores rurais, que consumiu milhões de vidas. Os prisioneiros eram levados por dez, quinze, e até vinte anos, e obrigados a trabalhar quatorze ou mais horas por dia, quase sem folga, em condições sub-humanas. Milhões nunca voltaram. Era praticamente um regime de trabalho escravo, contra o próprio povo.

Kolimá:

Kolimá era o pior dos campos. Localizado na Sibéria, no extremo-oriente, onde, no inverno, as temperaturas chegam a trinta, cinquenta e até sessenta graus negativos. O trabalho lá era nas minas de ouro e carvão, e na construção de estradas, a principal delas conhecida como “A Estrada dos Ossos”.

O trabalho em Kolimá era nessas condições, com três dias de folga no mês, quatorze a dezesseis horas diárias, com frio, vento, neve, e até com chuva, ao ar livre ou dentro das minas, onde a água congelava. Os homens, mal vestidos, com os pés congelados, sofrendo com o frio constante, seja quando trabalhavam, seja quando se recolhiam para dormir, em alojamentos precários, com aquecimento precário, mal alimentados com uma sopa rala, um mingau e umas migalhas de pão. Por anos...

Varlam:

Chalámov, com alguns intervalos, ficou nos Campos quase vinte anos, nove deles em Kolimá. Depois saiu, e levou mais vinte anos escrevendo e organizando suas memórias, os ‘Contos de Kolimá’. Julgava ser importante registrar e contar essa página da história da humanidade, que, juntamente com os Campos de concentração nazistas, considerava os piores terrores da história humana, que, a partir deles, o mundo não poderia caminhar como até então havia caminhado, com esperanças e fantasias.

Os Contos:

Solenitsin, no seu ‘Arquipélago Gulag’, se notabilizou por fazer a grande crítica política de um sistema que, deliberadamente prendia e escravizava o próprio povo, submetendo-o a imensa crueldade, respaldado por enormes farsas judiciais e por um grande aparato repressivo, onipresente, diante de uma sociedade que se calou, e mesmo, o apoiava.

Chalámov vai por outro caminho em ‘Contos de Kolimá’; faz uma pungente crítica humana. Afirma que, depois dos Campos, a humanidade não poderia ser mais a mesma. O que o homem fez contra o homem havia atingido o máximo da desumanização, pensada e possível.

Nos Contos, propõe uma nova forma de escrever, rompendo com a tradição – gigante – da literatura russa. Propõe que, depois de Kolimá e de Auschwitz, toda a escrita deveria ser um relato pessoal do vivido. Não havia mais espaço e tempo para romantismos.

Descrever os ‘Contos de Kolimá’ é muito difícil. Como explicar que o autor escreveu de modo suave, sem grandes adjetivações, abordando a subjetividade humana, com uma leve ironia, e ao mesmo tempo, narrando fatos os mais crus possíveis do ponto em que a degradação humana pode, ou pôde, chegar. Fatos crus e cruéis.

Todo o livro descreve as condições da prisão, ou do exílio, nos Campos, na taiga de Kolimá, e seus personagens. Fala dos homens obrigados a viver naquelas condições, mal alimentados, com uma fome permanente, com feridas na pele provocadas pelo frio e pelo congelamento, e seus carrascos. É um testemunho do que o sistema é capaz quando sobrepõe a humanidade de cada um de nós. E mostra também o estado de desumanização em que se transformaram muitos homens, para sobreviver naquelas condições.

Resenha

Sempre a resenha de um livro de contos nos impõe uma decisão: apresentar o livro em seu conjunto, ou cada um dos contos de modo independente, mesmo levando em conta que faz parte de uma composição maior.

‘Contos de Kolimá’ não nos apresenta este impasse. Embora composto por vários contos independentes, o fio condutor é um só. É praticamente uma autobiografia do autor, de seu exílio interno, é sobre as cenas e episódios que viu e que vivenciou, ou seja, o cenário é sempre o mesmo, o personagem principal também, e o argumento geral também é o mesmo.

Concluir a leitura, e falamos apenas do primeiro volume, nos provoca um silêncio, quase um vazio, menos que uma reflexão, porque não há discurso, não há causa, não há bandeira. É apenas uma descrição do que a humanidade fez consigo mesma. E nós somos humanos.

A sensação, em verdade, é de que somos todos culpados, primeiro, por não saber, e depois, por não querer saber. Mas não é uma culpa política ou racional; não, é uma culpa por ser humano, e por compreender que outros humanos fizeram aquilo, esticaram a corda ao limite. A humanidade do nosso tempo fez Kolimá efez Auschwitz, e Varlam, tranquilamente, nos pega pela mão e nos leva lá dentro. Sem julgamentos, sem raivas, sem adjetivações, sem filosofias ou conclusões. Apenas nos mostra. Ou conta.

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