Crime e Castigo – um livro difícil. (Devo escrever sobre isso)
Julio Pujol
Dostoiévski é difícil. E é.
Algumas vezes a grandeza está na
simplicidade, noutras na complexidade. Em Dostoiévski vale o segundo caso.
Quando pela primeira vez uma colega falou-me
do livro “Crime e Castigo” pensei que deveria lê-lo. Sabe quando a gente fica
com aquela sensação de que “todo mundo já leu esse livro, menos eu”? Foi mais
ou menos isso.
Ela me disse que se tratava de um
livro que contava a história de um rapaz que cometeu um crime (matou uma velha
agiota) e depois ficou angustiado temendo ser descoberto e ao mesmo tempo
querendo se entregar. Era mais ou menos o caso do crime perfeito. Fiquei
curioso. Achei uma boa história.
Tempos depois, quando fui ler o livro
não vi nada disso. Tudo era uma outra coisa.
O primeiro Dostoiévski que li foi
“Memórias da Casa dos Mortos”; um relato dos anos em que o autor passou na
Sibéria, em uma prisão czarista, na realidade um exílio interno. Um livro
concreto, falando de fatos e personagens concretos, autobiográfico. Já
prenunciava um olhar profundo sobre a vida e seus seres.
Passados mais de vinte anos dessa
leitura, ainda são inesquecíveis para mim as cenas “do banho” (na Rússia ainda
existem os banhos públicos, coletivos, até hoje) e a cena “do teatro”. Geniais.
Para quem se interessa pela cultura
Russa, ou para quem gosta de um bom livro, ou para quem se interessa pelo tema
das “instituições totais” vale a pena a leitura. Ou mesmo para poder comparar
as prisões czaristas (onde estiveram Lênin, Stalin, Trotski) com os relatos de
Soljenitsin sobre as prisões e os exílios do tempo do socialismo, infinitamente
mais cruéis.
Mas voltando ao nosso “Crime e
Castigo”, é fato que existe um jovem estudante pobre, Raskólnikov, que tem uma
mãe e uma irmã, Dúnia. Que mata uma velha agiota e sua irmã Lisaveta para
roubá-las. Que esse jovem tem um amigo e colega, Razúmikin. Que há também a
figura do investigador Porfiri, que parece saber, e sabe, que Raskólnikov
cometeu o crime. E tem também Sônia, uma moça de enorme sensibilidade que se
prostitui para alimentar a família miserável e é a única que compreende Raskólnicov.
Dito isso, o autor nos abre um mundo;
o laboratório da mente humana, de uma mente angustiada, que é marca dos
escritos de Dostoiévski. Uma mente (um homem) pressionada pelo seu tempo. Um
tempo de transição, a segunda metade do século XIX, quando o mundo se
urbanizava, a indústria se consolidava, os movimentos sociais nasciam, a
comunicação se ampliava entre os homens e seus saberes. (Fiodor Mikhailovitch
Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821 e morreu em São Petersburgo em 1881).
É como se fosse um mundo que se
preparava para ser algo; Para ser mundo.
A sensibilidade do gênio (assim como
a dos poetas) centrou seu olhar não nas máquinas, nas ideologias e no
progresso, mas no interno do homem, na sua mente, no seu coração, nos seus
valores, nos seus medos, nas suas angústias e nas suas fés.
E a cidade em que Dostoiévski decidiu
viver grande parte da sua vida, São Petersburgo, era o cenário perfeito. Uma
cidade construída de modo planejado (quem sabe artificial), numa região
inóspita, pantanosa, gelada em grande parte do ano, sombria, com gente que foi
se enraizando aos poucos, construindo uma identidade urbana meio europeia, num
país ainda meio arcaico. (hoje São Petersburgo é uma outra coisa). Uma cidade
amada e odiada por Dostoiévski. E o autor cai no meio dela com seus personagens,
seja nos dias sombrios, seja nas noites brancas.
Em “Crime e Castigo”, paralelo ao
enredo, que de fato é simples, o autor vai nos levando para o íntimo dos
personagens, mas sem analisá-los, apenas expondo suas reações, suas reflexões,
seus medos e seus valores. Nos faz ficar pensando, e no entanto não nos dá
nenhuma resposta. Às vezes você pensa: “que chato esse Raskolnikóv, um
infantil”; outras vezes você percebe uma reflexão profunda, existencial. No
fundo, para mim, é indecifrável. Talvez somente Sonia o entenda.
Também para suas reflexões
filosóficas e existências (tão facilitadas pela atmosfera russa do século XIX)
o autor parece não nos dar respostas, embora em vários momentos seja bastante
assertivo. Mas sua assertividade, convincente, ao término nos deixa em dúvida
se ele realmente afirma algo e acredita, ou se está nos dizendo exatamente o contrário.
E todas essas reflexões e mergulhos no íntimo humano, feitos com maestria, são
anteriores a Freud e a sua psicanálise. E óbvio, com outra linguagem.
O que num primeiro momento pode
parecer uma reflexão sobre os valores morais e existenciais do homem russo, sua
angústia frente à vida, descortinados com imensa sensibilidade, na realidade é
um pouco da consciência do mundo, portanto universal, não russa, exposta.
E todos estes elementos estão também,
enfadonhamente, em outras obras como “Noites Brancas”, “Notas do Subsolo”, “O
Idiota” e finalmente em “Irmãos Karamázov”, um livro definitivo.
Ler Dostoiévski é entrar no
laboratório do gênio. Sempre um desafio.
“Por que, diabo, me preocupo eu desta
maneira e sofro todas estas inquietações por causa de uma bagatela?, pensou,
sorrindo estranhamente. Hum! Sim, é isso, está tudo ao alcance do homem e tudo
lhe vem parar às mãos, simplesmente o medo... Isto é um axioma... É curioso: de
que será que as pessoas tem mais medo?...”
“Os indivíduos se dividem, segundo a
lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me
permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação
da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem
no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas...”
“De maneira geral, indivíduos com
ideias novas, inclusivamente de algum modo capazes de dizerem algo de novo,
nascem pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha.”
“Então adivinhei Sônia – continuou
com entusiasmo – que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e
a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer”.
“Será difícil encontrar outra terra
onde atuem sobre a alma humana influxos tão tenebrosos, tão intensos e tão
estranhos como em Petersburgo. Talvez seja a ação do clima! Mas, como é o centro
administrativo do país, o seu caráter deve refletir-se na Rússia inteira.”
“Os russos, de maneira geral, são
gente de vistas amplas, como a sua terra, e muito propensos para o fantástico,
para o desordenado; mas infelizmente, trata-se de uma amplitude sem
generalidade especial.”
“Mas aqui começa já uma nova
história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu
trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade
nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova
narrativa... mas a nossa presente narrativa termina aqui.”