segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

São Petersburgo - A cidade da Rússia





São Petersburgo – a cidade da Rússia

Julio Pujol

Petersburgo nasceu da visão e ousadia de um Czar, Pedro, chamado “O Grande”, em 1703. Foi uma cidade planejada e construída como a nossa Brasília; a diferença é que foi há uns 300 anos atrás.
Erguida num pantanal às margens do rio Neva, Petersburgo (ou São Petersburgo) simbolizava para Pedro a porta de entrada (ou janela) da Rússia para o Ocidente.
Com a visão de que a Rússia (quase feudal) precisava se modernizar aproximando-se da Europa, Pedro concebeu a cidade com tudo o que de melhor havia em seu tempo. Luxuosos palácios, arquitetura neoclássica, planejamento urbano (que funciona bem até hoje), teatros, canais, parques... Tradição e modernidade são marcas de Petersburgo.
Pedro chama suas principais ruas de “Perspectivas” (Prospekt) e não de avenidas. É assim com a lendária Nevski Prospekt ou Perspectiva Nevski. Perspectiva, de sua etimologia grega: “ver ao longe”. De fato a Nevski Propekt, próxima às margens do rio Neva, possui mais de cinco quilômetros em linha reta permitindo, realmente, ver ao longe.
Criada no inicio do século XVIII como um sonho, uma visão, Petersburgo passou a ser a capital do imenso Império Russo, que naquela época já ia do Cazaquistão ao Báltico, de Vladivostok à Ucrânia. São Petersburgo nasceu para ser a síntese deste Império.
Pela sua inicial artificialidade e exotismo (uma cidade de palácios no meio do nada) Petersburgo acabou construindo um mito sobre si mesma. Um mito talvez forjado sob os milhares de russos mortos em sua construção. (Imagine-se construir uma cidade de palácios no meio de pântanos gelados há mais de trezentos anos atrás).
 Dificílimo falar de Petersburgo em poucas linhas. Uma cidade que fazendo jus ao seu mito, foi palco de grandes e trágicos acontecimentos, principalmente no século XX. Para além das intempéries climáticas como enchentes e nevascas, Petersburgo sofreu muito com a intervenção política.
Em 1917 foi palco da Revolução comandada por Lênin que ocupou o então chamado Palácio de Inverno (hoje Museu Hermitage). Uma revolução que foi trágica para a cidade que já abrigava a melhor indústria russa, a vida intelectual, os poetas, os teatros e as óperas; os bancos e os jornais, as grandes orquestras e as editoras.
Então vieram as expropriações, a censura, as perseguições à intelectualidade e a guerra civil. Na década de 1930/40 Stalin dá mais um golpe à cidade, devastando com sua intelectualidade.
Em 1941 Petersburgo (então chamada Leningrado) é cercada e bombardeada pelos nazistas durante novecentos dias. Três quartos de sua população desaparece pela fome, pelo frio e pelos bombardeios. Mas Leningrado resistiu.
Com o fim da União Soviética (ou do socialismo na Rússia), na década de noventa, Leningrado realiza um plebiscito e decide retomar seu antigo nome, São Petersburgo.
Com a abertura (a Perestroika e a Glanost) São Petersburgo começa a retomar o seu papel de centro cultural russo-europeu.
Hoje Petersburgo é uma cidade aberta, dinâmica, lotada de turistas de todo o mundo. As “noites brancas” são um atrativo a mais do verão petersburguense.

UMA HISTÓRIA CULTURAL
Se para a Rússia Moscou é força, economia, política, São Petersburgo é arte. Arte que transborda em cada esquina, em cada prédio, em cada canal, em cada ponte.
Moscou tem hoje onze milhões de habitantes e concentra o poder político (no Kremlin) de todo o país. São Petersburgo com quase cinco milhões, concentra grande parte do turismo; um turismo essencialmente cultural. Seus teatros, bares, restaurantes estão sempre lotados. Os passeios de barco pelos canais e pelo Neva são imperdíveis. Os palácios como Peterhof são estupendos. Na realidade apenas passear pelas ruas e observar a arquitetura, os monumentos, e as grandes perspectivas já vale a viajem.
O livro “São Petersburgo, uma história cultural” do músico, crítico cultural e escritor petersburguense, Salomon Volkov (Editora Record, 1997) mostra-nos a Cidade de Pedro através de uma perspectiva histórico- cultural, situando-a ao lado das grandes capitais culturais do mundo como Paris, Roma e Barcelona.  É uma preciosidade. (nem sempre “preciosidade” refere-se a algo raro ou antigo. Às vezes o termo refere-se ao conteúdo de uma obra. Esse é o caso).
Com essa obra Volkov faz, no campo cultural, para a Rússia, o que anteriormente já havia feito Soljenitsin no campo político com o “Arquipélago Gulag”. Uma obra definitiva. Um clássico. (para quem se interessa pelas coisas da Rússia essas duas publicações são imprescindíveis).
Sem dúvida “Uma história Cultural” é um livro mais “útil” aos profissionais e amantes da música, do balet, da poesia, da literatura e da história. Porém aos contemporâneos de seu tempo, interessados no humano e suas manifestações, é um livro quase imperdível.
Quem não está disposto e aberto não deve aventurar-se por suas mais de seiscentas páginas. Mas, aos de alma e curiosidade aberta é uma bela aventura, um belo passeio pela cultura desta metrópole, ao mesmo tempo regional e cosmopolita. Um tanto exótica (no sentido de estranha), porém, como quase tudo que os russos fazem, grande e única. O livro é uma delícia.
Volkov pega o “fio” do mito petersburguense e descortina a sua modificação e evolução através da história e das manifestações culturais. É preciso lembrar que Petersburgo é a cidade onde brilharam Glinka e os “Cinco Grandes” na música (Korsakov, Mussorgski, Cui, Borodin e Balakirev), também Tchaikoviski, Rachmaninov, Shostakovich e tantos outros.
Pushikin, Gogol, Tchekov e Dostoiévski (assim como tantos outros também...) tiveram Petersburgo como cenário de suas obras.
É a cidade dos poetas Block e Akhmatova, e também de tantos outros...
No balet, tem e teve os melhores do mundo (bailarinos, coreógrafos, produtores) Balanchine, Nijinski, Petipa, Barishinikov e também tantos e tantos... Claro, é sede do Mariinski e do Kírov.
Impossível falar de Petersburgo nestas poucas linhas. Teria que citar a excelência acadêmica, o complexo militar marítimo, falar do Hermitage, da Fortaleza de Pedro e Paulo, das Igrejas, da livraria Dom Kiniga, da Nevski, do Jardim de Verão, do Teatro Alexandrinski e do povo, claro; do jeito petersburguense de ser.
Uma experiência: ao visitar Petersburgo não espere uma experiência comum, normal. A cidade se impõe sobre você desde o primeiro momento. Acostume-se a andar em uma galeria a céu aberto. Cada prédio, cada esquina, cada canal, cada ponte é uma obra de arte. Em alguns momentos você pensa: “eu só queria uma cidade normal”; é muita arte, muita beleza, muita grandiosidade. E o Neva está sempre ali, calmo e silencioso, como que guardião do espírito da cidade.









quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Crime e Castigo – um livro difícil.



Crime e Castigo – um livro difícil. (Devo escrever sobre isso)
Julio Pujol

Dostoiévski é difícil. E é.
Algumas vezes a grandeza está na simplicidade, noutras na complexidade. Em Dostoiévski vale o segundo caso.
Quando pela primeira vez uma colega falou-me do livro “Crime e Castigo” pensei que deveria lê-lo. Sabe quando a gente fica com aquela sensação de que “todo mundo já leu esse livro, menos eu”? Foi mais ou menos isso.
Ela me disse que se tratava de um livro que contava a história de um rapaz que cometeu um crime (matou uma velha agiota) e depois ficou angustiado temendo ser descoberto e ao mesmo tempo querendo se entregar. Era mais ou menos o caso do crime perfeito. Fiquei curioso. Achei uma boa história.
Tempos depois, quando fui ler o livro não vi nada disso. Tudo era uma outra coisa.
O primeiro Dostoiévski que li foi “Memórias da Casa dos Mortos”; um relato dos anos em que o autor passou na Sibéria, em uma prisão czarista, na realidade um exílio interno. Um livro concreto, falando de fatos e personagens concretos, autobiográfico. Já prenunciava um olhar profundo sobre a vida e seus seres.
Passados mais de vinte anos dessa leitura, ainda são inesquecíveis para mim as cenas “do banho” (na Rússia ainda existem os banhos públicos, coletivos, até hoje) e a cena “do teatro”. Geniais.
Para quem se interessa pela cultura Russa, ou para quem gosta de um bom livro, ou para quem se interessa pelo tema das “instituições totais” vale a pena a leitura. Ou mesmo para poder comparar as prisões czaristas (onde estiveram Lênin, Stalin, Trotski) com os relatos de Soljenitsin sobre as prisões e os exílios do tempo do socialismo, infinitamente mais cruéis.
Mas voltando ao nosso “Crime e Castigo”, é fato que existe um jovem estudante pobre, Raskólnikov, que tem uma mãe e uma irmã, Dúnia. Que mata uma velha agiota e sua irmã Lisaveta para roubá-las. Que esse jovem tem um amigo e colega, Razúmikin. Que há também a figura do investigador Porfiri, que parece saber, e sabe, que Raskólnikov cometeu o crime. E tem também Sônia, uma moça de enorme sensibilidade que se prostitui para alimentar a família miserável e é a única que compreende Raskólnicov.
Dito isso, o autor nos abre um mundo; o laboratório da mente humana, de uma mente angustiada, que é marca dos escritos de Dostoiévski. Uma mente (um homem) pressionada pelo seu tempo. Um tempo de transição, a segunda metade do século XIX, quando o mundo se urbanizava, a indústria se consolidava, os movimentos sociais nasciam, a comunicação se ampliava entre os homens e seus saberes. (Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821 e morreu em São Petersburgo em 1881).
É como se fosse um mundo que se preparava para ser algo; Para ser mundo.
A sensibilidade do gênio (assim como a dos poetas) centrou seu olhar não nas máquinas, nas ideologias e no progresso, mas no interno do homem, na sua mente, no seu coração, nos seus valores, nos seus medos, nas suas angústias e nas suas fés.
E a cidade em que Dostoiévski decidiu viver grande parte da sua vida, São Petersburgo, era o cenário perfeito. Uma cidade construída de modo planejado (quem sabe artificial), numa região inóspita, pantanosa, gelada em grande parte do ano, sombria, com gente que foi se enraizando aos poucos, construindo uma identidade urbana meio europeia, num país ainda meio arcaico. (hoje São Petersburgo é uma outra coisa). Uma cidade amada e odiada por Dostoiévski. E o autor cai no meio dela com seus personagens, seja nos dias sombrios, seja nas noites brancas.
Em “Crime e Castigo”, paralelo ao enredo, que de fato é simples, o autor vai nos levando para o íntimo dos personagens, mas sem analisá-los, apenas expondo suas reações, suas reflexões, seus medos e seus valores. Nos faz ficar pensando, e no entanto não nos dá nenhuma resposta. Às vezes você pensa: “que chato esse Raskolnikóv, um infantil”; outras vezes você percebe uma reflexão profunda, existencial. No fundo, para mim, é indecifrável. Talvez somente Sonia o entenda.
Também para suas reflexões filosóficas e existências (tão facilitadas pela atmosfera russa do século XIX) o autor parece não nos dar respostas, embora em vários momentos seja bastante assertivo. Mas sua assertividade, convincente, ao término nos deixa em dúvida se ele realmente afirma algo e acredita, ou se está nos dizendo exatamente o contrário. E todas essas reflexões e mergulhos no íntimo humano, feitos com maestria, são anteriores a Freud e a sua psicanálise. E óbvio, com outra linguagem.
O que num primeiro momento pode parecer uma reflexão sobre os valores morais e existenciais do homem russo, sua angústia frente à vida, descortinados com imensa sensibilidade, na realidade é um pouco da consciência do mundo, portanto universal, não russa, exposta.
E todos estes elementos estão também, enfadonhamente, em outras obras como “Noites Brancas”, “Notas do Subsolo”, “O Idiota” e finalmente em “Irmãos Karamázov”, um livro definitivo.
Ler Dostoiévski é entrar no laboratório do gênio. Sempre um desafio.

“Por que, diabo, me preocupo eu desta maneira e sofro todas estas inquietações por causa de uma bagatela?, pensou, sorrindo estranhamente. Hum! Sim, é isso, está tudo ao alcance do homem e tudo lhe vem parar às mãos, simplesmente o medo... Isto é um axioma... É curioso: de que será que as pessoas tem mais medo?...”

“Os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas...”

“De maneira geral, indivíduos com ideias novas, inclusivamente de algum modo capazes de dizerem algo de novo, nascem pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha.”

“Então adivinhei Sônia – continuou com entusiasmo – que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer”.

“Será difícil encontrar outra terra onde atuem sobre a alma humana influxos tão tenebrosos, tão intensos e tão estranhos como em Petersburgo. Talvez seja a ação do clima! Mas, como é o centro administrativo do país, o seu caráter deve refletir-se na Rússia inteira.”

“Os russos, de maneira geral, são gente de vistas amplas, como a sua terra, e muito propensos para o fantástico, para o desordenado; mas infelizmente, trata-se de uma amplitude sem generalidade especial.”

“Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa... mas a nossa presente narrativa termina aqui.”







quinta-feira, 3 de setembro de 2015

HERMITAGE; UM MUSEU ÀS MARGENS DO RIO.

HERMITAGE: um museu às margens do rio.
(Julio Pujol)
Em recente artigo neste blog escrevi sobre a Galeria Tretiakov, de Moscou, dedicada a reunir e conservar obras de arte tipicamente russas. Andar pelas suas salas é fazer uma viagem pela história e cultura daquele imenso país.
A Tretiakov cumpre o seu papel também porque reúne uma rica mostra do que os russos produziram de belo para o mundo. Ali se vê claramente o quanto uma cultura local, nacional, pode ser universal; o quanto o belo com suas diversas nuances é universal.
No Museu Hermitage, de São Petersburgo, têm-se de certa forma o oposto: seus criadores (os czares Pedro I, Isabel Petrovna, Catarina II, Nicolau, etc.) trouxeram o belo universal, de diversas culturas e tempos para dentro da Rússia.
O museu, um dos maiores e mais ricos do mundo, com suas mais de trezentas salas e com quase três milhões de peças, permite-nos apreciar um panorama da arte mundial (também um pouco daquela russa). Permite-nos viajar no tempo e no espaço.
Nele as obras de arte fundem-se com a beleza, suntuosidade e elegância (às vezes clássica, às vezes barroca e rococó) de suas salas e salões. Escadarias, mobiliário, decoração, arquitetura, mármores, jardins, o dourado das grandes portas, a luz que penetra pelas janelas e abre a visão do Neva, tudo é de uma beleza estupenda. Rio e museu também se fundem; um sonho.
Criado inicialmente, por Pedro, o grande, para ser a residência dos czares, na nova capital do Império Russo, e depois reconstruído por Isabel Petrovna o Palácio de Inverno (projetado pelo arquiteto italiano Rastrelli, em estilo Barroco) é o embrião do futuro Museu Hermitage.
Hoje o complexo do museu compõe-se do Palácio de Inverno, do Pequeno Hermitage (criado por Catarina II), do Velho (ou Grande) Hermitage, do Novo Hermitage e do Teatro do Hermitage.
O Hermitage ao longo da história resistiu a eventos muito difíceis: enchentes do Neva, incêndio, à Revolução de 1917, ao Stalinismo e mais recentemente ao cerco dos nazistas. Na Segunda Guerra os alemães cercaram São Petersburgo por novecentos dias. A ideia era conquistar a cidade pelos bombardeios, pela fome e pelo frio. Mais de três milhões de peterburguenses foram mortos.
As obras do Hermitage foram evacuadas para Ekaterimburgo, além dos Urais, na Sibéria, onde a guerra não chegou. Durante o cerco, apesar da fome e das bombas, as visitas ao Museu continuaram. Os guias mostravam as paredes vazias e apresentavam os quadros como se ainda estivessem lá. Era uma forma da arte também resistir à barbárie. O Museu carrega a mística de São Petersburgo, uma cidade que resiste.
 São Petersburgo foi uma cidade planejada e construída em 1703 para ser a capital do Império, às margens do rio Neva, que desemboca no mar Báltico, e dali liga a Rússia a toda Europa.  Pedro I primeiro pensou São Petersburgo como uma porta (ou janela) para a Europa.
As Obras
De fato o Hermitage nasce da vontade e decisão da czarina Catarina II que manda construir, ao lado do Palácio de Inverno, um “Eremitério”, ou espaço para contemplação e reflexão, onde ela poderia expor e apreciar suas obras de arte. Eventualmente Catarina convidava seus próximos a visitarem seu “Eremitério”. O silêncio e a formalidade eram a regra. Aos poucos o espaço foi sendo aberto à visitação de estudantes de arte. Dia 7 de dezembro (dia de Santa Catarina) é considerada a data de aniversário do Museu.
Das primeiras aquisições de Catarina, principalmente na Europa, nasce o acervo do Museu. Como não era uma especialista em arte, buscou ajuda de conhecedores, entre eles Diderot e Grimm. Em 1796 quando falece Catarina I o Hermitage já contava com quatro mil obras. Em 1805 torna-se um museu público, embora ainda Imperial.
Seu acervo só cresceu, embora em alguns períodos algumas obras foram vendidas e, depois da Revolução, o Hermitage abasteceu vários museus do interior da Rússia.
Difícil enumerar ou falar hoje das importantes obras que existem lá. Como falei antes, são quase três milhões. Claro, nem todas são quadros. Estão lá objetos arqueológicos dos Citas, primeiros povos a ocuparem o território russo, dos gregos, dos egípcios, dos africanos. Prataria francesa, cerâmica inglesa e italiana, mobiliário e vestimentas dos czares russos, bustos romanos, arte chinesa, e tanto mais.
Mas o que torna o Hermitage uma referência e um dos principais museus do mundo sem dúvida é a coleção de pinturas. E esculturas. Ali se pode ver um panorama da arte europeia do século XV ao século XX. Há preciosidades como obras de Michelangelo, Rafael, Leonardo da Vinci e de vários do Renascimento Italiano.
O museu possui uma das maiores (ou a maior) coleções da Arte Holandesa e Flamenga do período Barroco do mundo. Um grande acervo do classicismo e do expressionismo francês. Obras do retratismo inglês e uma grande coleção também dos espanhóis do século XVI.
Não dá para citar todos, mas para termos noção da grandeza do Hermitage podemos falar de quadros dos italianos Ticiano, Tintoreto, Veronese; “O Tocador de Alaúde” de Caravaggio, “Judite” de Giorgione... Depois tem os espanhóis, holandeses, alemães, ingleses, franceses. “São Pedro e São Paulo” de El Greco; “Perseu e Andrômeda” de Rubens. Muitos Rembrandt como “A Volta do Filho Pródigo”, Hubert Robert (a maior coleção do mundo).
Tem Francisco de Goya, Monet, Rrenoir, Van Gogh. Sim, tem Van Gogh. Um grande acervo, luminoso, de Gauguin. Tem Cézanne, Picasso, Kandinsky e Matisse. E vou parando por aqui para alguns breves comentários pessoais.
Estive apenas uma vez no Hermitage.





. Uns dois dias e sei que precisava muito mais. Na realidade o Hermitage é infinito se a cada vez também nosso olhar é novo. Vale uma viagem a São Petersburgo. O problema é que também a cidade é uma obra de arte e demanda muitos dias e muitos olhares. Escreverei.
Para mim, de apaixonar, no Hermitage e cito apenas algumas impressões e sensações está em primeiro lugar (para um professor de história) poder subir as escadarias do Palácio de Inverno por onde os Revolucionários de Lênin subiram naquele outubro de 1917 e mudaram a história da humanidade no século XX. E onde também Eisenstein filmou o seu famoso filme “Outubro”, para comemorar os dez anos daquela Revolução.
As esculturas de Rodin, Falconet e Canova são indizíveis. Só o silêncio pode explica-las. Na linguagem popular: “só vendo”. E é isso: só vendo. “As Três Graças” de Canova é absolutamente espiritual, porque é possível arrancar o espiritual da pedra. E Canova conseguiu. É Sublime. Só essa peça vale uma viagem à Rússia.
Mexeu comigo estar diante de “A Dança” e de “A Música” de Matisse. Dois imensos quadros de 2,60m por 3,90m. Impactante. Não sabia que estavam lá, e quando entro em uma sala eles se apresentam enormes. Se pode dançar junto. E estar diante de um Van Gogh também te tira as palavras. As cores de Paul Gauguin me seduziram. Na realidade cada sala te acolhe como se ela fosse a mais exuberante. Até você passar para a próxima.
Bem, não se pode escrever tudo, então vou parando.
Pra encerrar, três referências que me ajudaram neste texto:
O álbum-roteiro “Ermitage” da Ed. P-2 de São Petersburgo, 2006;
e “Museu Hermitage” – Coleção Folha – Grandes Museus do Mundo – 16, 2009 da Ed. Mediafashion. RJ.

O filme “Arca Russa” de Alexander Sokurov, 2002, filmado todo dentro do Museu em uma tomada só, que mostra o quanto está ali um pouco, ou muito, da alma Russa.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Moi Piter (Мой Питер) - Louise Bassini








                     De ti,

       aceito até 

                     tua ideologia

                crucificada
Em imagem 
                
                - verso - 

qual pílula
               
               dourada

E quem se deu ao trabalho
de minimamente 

             - conhecer-me - 

 Sabe que não cedo este pensar a outra morada

Se fosse preciso descrever
                                           o que é amor

Embora a mim não caiba  nenhuma 

               matemática

Eu reservaria - a mim - tua aparência

Enigmática Num pedestal de vidro,
paixão e ardor

Não cabe a mim (julgar-te),
                                         
              ó amada!

 E bem sei que és única
              
                                                           ao teu jeito

Que doa-me em silêncio
qualquer feito
Como aguenta em silêncio um ser

            - de amor - 


E sinto que sei pouco,
(embora sinta)

Tua     brisa      na     minha     face,

trazendo a mim

Um cordão
a amarrar-me então sem fim
Que adorna
mas aperta

(até a dor)

E se odestinofor     - amar-te -     semmotivos

Embora algum misticismo

'inda me reste

Tão pouco me apego
ao que entristece

Cabe apenas
                   ao que é 
                   
                   ser

                                       
                   o que for.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

GALERIA TRETIAKOV E GALERIA ONTOARTE – DUAS ESTRADAS PARA O BELO

GALERIA TRETIAKOV E GALERIA ONTOARTE – DUAS ESTRADAS PARA O BELO











A Rússia e a Ucrânia são Europa. Mas uma Europa diferente. Uma Europa maior que a Europa. Uma Europa multi-étnica, multi-línguas; uma Europa que traz a Ásia dentro. Uma Europa que olha para o norte e para o sul, para o oeste e para o leste.

TRETIAKOV –
Ainda no século XIX o rico industrial e comerciante Pavel Tretiakov inspirado nos museus e galerias da Europa criou um espaço, e um acervo, que reunia o melhor da cultura russa. Queria disponibilizá-lo à visitação de todo o povo pois considerava que a produção artística e cultural (particularmente a pintura) era uma produção e um patrimônio de todo o povo. E assim o fez.
Tretiakov usou sua fortuna, prestígio e conhecimento de arte para adquirir uma quantidade imensa de quadros dos melhores artistas russos. Assim nasceu no coração de Moscou a Galeria Tretiakov, hoje um imenso espaço público aberto à visitação de qualquer cidadão, russo ou estrangeiro.
Entrar na Galeria é um privilégio, como de fato entrar em qualquer grande galeria ou museu do mundo. Ao passar a porta você é transportado para uma outra dimensão. Uma dimensão onde o silêncio vale; uma dimensão onde a contemplação vale, onde o tempo parece que fica suspenso, e você é simplesmente levado pelos olhos. E vai flutuando de peça em peça. E não quer ir embora. E é surpreendido e surpreendido.
Na Tretiakov está exposta uma síntese da produção artística, da cultura e da história milenar da Rússia, desde as pinturas sacras da Rússia de Kiev e de Novgorod, aos ícones da Idade Média russa como o genial, genial “Trindade” do genial Andrei Rublev. A “Trindade” capta o espírito através das formas dos homens; consegue dar forma ao silêncio, pintar o instante de paz através da luz e da harmonia das figuras; que atinge a perfeição. Vale a pena conhecer esse quadro. E está ali... Só ele vale uma viagem a Moscou.
Depois tem as cenas da história do país e do cotidiano das aldeias do interior da Rússia; tem os retratos da nobreza e dos czares, tem a imponência de uma arquitetura única das igrejas e palácios; tem a crueldade dos guerreiros e o sofrimento do povo; tem as festas populares e os trenós na neve. Tem os retratos dos grandes: Pushikin, Dostoiévski, Mussorgski... Tudo isso com cores, traços e a maestria dos grandes russos como Repin, Fedotov, Shedrin, Rokotov, Kranskoi...
Tem retratos de Pedro, o Grande, de Catarina, a Grande, entre tantos outros. Tem retratos de damas, de jovens e belas russas; poderosas e enigmáticas como as Monalisas. Vale um suspiro; são realmente lindas. E tem a Vanguarda Russa do início do século XX, os formalistas/construtivistas/abstracionistas/suprematistas (Kandinski, Tatlin, Chagal, Rodshenko, Malevich...) e a arte soviética do pós-1917, o Realismo Socialista, ainda hoje uma descoberta para o ocidente.
Pois é, e está tudo lá. Aberto ao público. Esperando... Você viaja um milênio inteiro em algumas horas.

ONTOARTE -

Na Ucrânia visitei a Galeria de Ontoarte que expõe as obras do mestre Antônio Meneghetti, no coração da milenar Kiev. Sim, Meneghetti também pintava. No centro da cidade, próximo às antigas muralhas, protegida pelo Dniepr, uma Galeria de luz. Luz e luz. Estradas do espírito, do belo e da contemplação.
“A Ontoarte é um fazer aberto, o capricho amável do Ser como novidade de existência positiva.”
Obras dos mais belos traços do íntimo humano. Uma arte que irradia paz a todos que a contemplam. Que comunica valores e critérios. Que transforma para sempre. Que se quer levar junto.
Na Galeria Ontoarte é só o belo expresso no belo. O belo que se mostra e se transforma quando os olhos o tocam. Um belo que comunica e faz mais belo. Que te faz partir calado. Que centra tua estrada na estrada. Tua alma na alma. Tua luz na luz. O teu belo no belo.
No coração ensolarado de Kiev. No coração da Europa. Uma experiência quase incomunicável por palavras. Meu esforço aqui é enorme.
Uma obra de ontoarte é vida. Vida que comunica mais vida. É inspiração que provoca mais inspiração. É beleza que quer dançar com mais beleza. É estrada que quer caminhar. É ação que quer mais ação.
“intuir, interagir e compreender OntoArte é deparar-se consigo como novidade, beleza, criatividade e prazer estético”... Prazer estético...

No Brasil também tem Galeria Ontoarte. Ali no Recanto Maestro, próximo a Santa Maria.


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Rússia: O que ela faz com a gente




Rússia: O que ela faz com a gente
Louise Bassini

Há um silêncio escondido no som do ar fresco do verão russo. Ele dialoga conosco quando, de súbito, adentramos uma rua vazia. Memórias que antes não nos pertenciam acariciam-nos e, num repente, somos invadidos por milhares de sentimentos que passam a ser nossos. E os nossos sentimentos passam a ser do vento. Nessa troca irreversível, você vê a si mesmo nas folhas das árvores, reconhece com mais familiaridade o cheiro das coisas, misturam-se realidade e pensamento em coisa vivida, sem linhas de corte.
A Rússia não é apenas suas construções majestosas, seu colorido, seus Ladas e Mercedes. A Rússia é o que ela faz com a gente quando estamos sozinhos. É o momento em que fica só você e ela. O sentimento mais puro de intimidade e contato com o ambiente. O que ela faz com a gente é uma coisa de mulher amada e louca. Ela demanda amor demais e, ao mesmo tempo, parece uma garantia de porto seguro de amor em retorno. Você se sente aconchegado no amor de um território que sofreu tanto, que aprendeu a ter ternura diante das crises mais obscuras.
Ela é aquela cicatriz latente que a gente tem orgulho de mostrar porque sobrevivemos ao ataque que a deixou na nossa pele. Não é pouca coisa, jamais será insignificante.
É aquele amor aparentemente estável que nos invade como um turbilhão apenas com a leitura de uma frase, escolhida ao acaso em um livro. Como se essa frase fosse um segredo a ser divido entre você e ela, e há um misto de lágrima de comoção com um sorriso de satisfação.
Ela é todo um universo de tudo que está dentro, exteriorizado em imagem e colorido do lado de fora. E quando alguém pergunta, em tom de deboche: “Você realmente gosta da Rússia, hein?”, eu tenho o orgulho e a certeza de poder responder: “Eu não gosto. Eu a amo.”.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

A crítica social por trás de Leviatã




A crítica social por trás de Leviatã

Alessandra Scangarelli Brites


Em uma tarde de domingo, durante nossos “momentos” de reflexão e leitura, minha madrinha e eu comentávamos que os filmes, como os livros, para além do entretenimento servem como ferramenta de reflexão filosófica e sociológica. Ainda aqueles que parecem sem qualquer pretensão de análise, acabam por transmitir valores sociais já conhecidos, nem que sejam para cultivá-los, perpetuá-los. E, certamente, existem aquelas obras cinematográficas cujo objetivo seria o de promover uma discussão do cenário político, social, econômico. A escola soviética baseou-se, em grande parte, nesta premissa para além: o cinema como uma ferramenta transformadora da realidade humana.
Como russos, também franceses da Nouvelle Vague, do neorrealismo italiano e alemão, as escolas muito estudadas nas disciplinas e faculdades de cinema no âmbito mundial, tinham como fator básico tal premissa. Com o fim da União Soviética e, consequentemente, da Guerra Fria, o que significa dizer o fim da dicotomia e competição civilizatória mundial, que ocorreu entre os diferentes sistemas capitalista e socialista, esta linha de pensamento cinematográfico passou a ter menor preponderância. E atualmente, em um período considerado de crise criativa do cinema, quando a premissa de busca pelo lucro impera, tanto os grandes estúdios quanto às médias e pequenas produtoras direcionam suas produções para entretenimento, ou histórias de cunho pessoal, transtornos psicológicos, que apenas refletem alguns aspectos da sociedade de nossos dias.
Extremamente individualistas, nas temáticas mais preponderantes está a busca pelo prazer descomunal. Isso nos leva, por decorrência destes e outros fatores, a conviver com diversas doenças de cunho psicológico, que parecem afetar a todos, em especial aos mais sensíveis. Particularmente, os que percebem o drama existencial que se vive. Sim também existencial, pois com o fim da União Soviética, ainda que com os erros do sistema, um ideal, ou a possibilidade de alternativa ao sistema vigente, o capitalismo, passou a ser mais remota. O capital, cujos seguidores promoveram e continuam a propagar a ideia de que não existe outra possibilidade ao sistema existente. Há, portanto, um vazio, que tenta ser preenchido por algumas formas ideológicas inclinadas para um radicalismo, a exemplo: o fundamentalismo religioso, os ecoradicais, que querem esterilizar populações inteiras dos países em desenvolvimento como se eles fossem a causa dos problemas, e o neonazismo.
Contudo, por sorte talvez, nenhuma delas têm ainda credibilidade suficiente para tornarem-se hegemônicas. Porém, o sistema liberal, do ultra individualismo que preserva a essência animal do homem, em que o mais forte deve vencer o mais fraco, tão pouco nos parece uma alternativa, embora seja a que estamos consolidando, talvez sem saber. Estes cenários são típicos dos períodos de crise que são os melhores momentos para a criatividade humana, se tivermos a sensibilidade para tanto. Leviatã (2014), de Andrei Zviáguintsev, ganhador de melhor roteiro em Cannes, do Globo de Ouro 2015 e indicado ao Oscar 2015 de melhor filme em língua estrangeira parece correr estes caminhos e é sobre ele que vamos comentar um pouco mais a seguir.
Em uma pequena cidade, no litoral da Rússia, perto do Mar de Barents , Kolia, um homem de meia idade e pai de família, tenta impedir na justiça que sua casa seja derrubada pelo prefeito local, conhecido por seus esquemas de corrupção. Para além de mais um filme sobre corrupção e injustiças do sistema, Leviatã é um filme denso e filosófico acima de tudo. Talvez o seu maior deslize seja abordar diversas temáticas ao mesmo tempo, o que pode levar, às vezes, a um tratamento um tanto superficial destes temas. Certamente, cada olhar sobre um trabalho terá suas particularidades. Em especial, é difícil que o filme possa ser completamente vinculado à obra de Thomas Robbes, o Leviatã, porque ao contrário do que foi divulgado pela mídia, Hobbes via o Estado como uma ferramenta necessária e positiva, que visa conter o caos. Em Leviatã, temos uma crítica a este aparato político burocrático, a partir de bases filosóficas bem profundas, que se não bem acompanhadas pelo espectador, passam despercebidas. Entretanto, o filme, justamente por se tratar de uma temática densa, na sua edição acaba por deixar um queria ver mais, ou poderia discorrer mais sobre tal assunto.
 No meu caso, ainda gostaria que diversas questões ali tratadas fossem mais aprofundadas como a própria relação Estado e Igreja; ou a posição da mulher, que atualmente é pouco retratada nos filmes russos, não tendo o papel central de protagonista que elas, na realidade, têm, e de forma bem acentuada na sociedade russa. Poderia dizer que, ao contrário do que se pensa, as russas fazem o que querem, sendo os valores que as conduzem um prato cheio à criatividade que se predispõe questionadora e analítica. Algo interessante a refletir, pois temos diversos momentos de puro conservadorismo sim, como vejo em algumas classes sociais do Brasil e em outros países. Isso, creio, é pouco representado, não apenas em Leviatã, que apresenta superficialmente os perfis femininos, sendo a personagem central vinculada ao homem e submetida a análise: afinal, Lylia, a esposa de Kolia, que o trai com seu melhor amigo Dmitri, deve ou não ser perdoada pelo que fez? Teria ela sido a principal causa, para que Kolia acabasse por perder a cabeça, fazendo com que toda a vizinhança o reconhecesse como o culpado por sua morte? Aqui temos um conflito interior bastante humano que corre paralelamente com a questão central do filme. Contudo, ele acaba tendo uma vinculação que iremos perceber mais adiante, quando nos fica evidente a temática central do filme.
Podemos perdoar o diretor por esta temática feminina, já que a sua questão chave está na análise dos valores sociais, mencionados acima, e idealizados neste período do século XXI. Lembre que os valores moldam o jeito de viver de cada civilização e geração, promovendo formas de conduta que chegam ao poder, seja ele político, ou financeiro. Descartando esta possibilidade em Leviatã, novamente acabamos caindo em um lugar comum do tipo: "olha como a Rússia de Putin é horrível". Como se todos aqueles problemas que são parte de uma história de séculos, fossem agora motivadas por um homem só. Está é uma visão muito simplória e simplista que não cabe para este filme.
Recapitulando, entre um dos resultados visíveis deste sistema de valores individualista está a volta, cada vez mais forte, do poder religioso, que se tornou uma variável importante e que já caracteriza a nossa época e, no caso específico da Rússia, nos trás perguntas do tipo: estaria isso relacionado ao fim da URSS e seu Estado laico? Ou toda a perda da representação simbólica que os soviéticos eram para diversos grupos políticos espalhados mundo afora agora os tornaram em almas perdidas, que almejam ser resgatadas por alguma fé ou causa de cunho radical, por exemplo? É importante frisar que não se está querendo ferir a fé de ninguém. É possível acreditar e respeitar a fé de cada um, o que considero algo diferenciado de doutrinas religiosas. Na minha concepção, estas são políticas, como qualquer instituição humana, quando falamos da política para além dos partidos políticos. Elas têm seus interesses, inclusive econômicos. A religião aqui tenta suprir o que o sistema dos valores individuais não fornece: a presença do outro. O que pode gerar uma massa de controlados por valores de instituições que ainda carregam doutrinas um tanto arcaicas e pouco compatíveis com o mundo atual.
Por fim, creio que Leviatã coloca uma questão não nova, mas que ainda vale refletir: o quão igual, ou justa pode ser esta sociedade democrática, baseada no respeito aos valores individuais. Para melhor explicar, lembre, que quando houve o fim da URSS, este sistema liberal do Ocidente entrou de forma avassaladora na Rússia, não tendo eles nem tempo hábil para adaptação. Afinal, um novo molde de princípios se instaurava: de que agora o respeito ao indivíduo é a maior nota a ser tocada por lá, falando em português simples. Esqueça a comunidade, esqueça o todo, ou todos, agora o “EU” impera. E uma boa parte do mundo aplaudiu em pé, nos anos 1990.
Só que o “EU” não é apenas legal e respeitoso, é também mesquinho, é egocêntrico, é individualista, é ganancioso, é violento. Não há o “OUTRO” nesta sociedade produtiva, em que se baseia ainda numa suposta interpretação de Darwin, de que o mais forte, vence o mais fraco. Algo que o grande pensador inglês jamais se propôs a fazer. Agora, estes valores não são impostos por um homem "muito mau”, ou um Estado "muito mau", ou um país "muito ruim", ele está em todos nós. Ele faz parte do sistema civilizacional, que alguns adoram dizer, que venceu a Guerra Fria: o liberal e da sociedade “livre”.
Ou seja, é cada um por si. Como menciona o filho de Kolia, que após a morte da madrasta e a prisão do pai, se encontra sozinho no mundo. Contudo, ele afirma não precisar de ninguém. É mais um sobrevivente, ou melhor uma vítima desse sistema de relações humanas cada vez mais caótico. Assim como é Lylia, obrigada a viver em mundo de aparências, pois tenta lidar com os diferentes interesses individuais do marido e do amante. Estamos falando de uma prisioneira, um indivíduo fraco, incapaz de exercer um poder de influencias, de competir e sobreviver.  É esta a ideologia, os princípios que norteiam o sistema político, econômico e social, que tem a petulância  de ainda se dizer não ideológico. E ele é coordenado por quem apresenta maior capacidade de compor os diferentes interesses para se manter no poder. E os que poderem nele sobreviver terão de ser, ou parecer, também articulados, no intuito de poderem caminhar “livres” do perigo nesta selva.
 Ao regressarmos na história, é preciso lembrar que a URSS foi uma tentativa de se opor a este quadro. Se foi bem sucedida ou não, é pauta para outra discussão, mas houve uma tentativa de promover a ideia de que o Estado seria o meio  organizador da sociedade, de forma a criar um outro contexto, uma sociedade com novos valores, que vivesse em comunidade. Com o fim desta perspectiva em 1990, no seu lugar temos o conjunto de influências políticas individuais, que passam a estabelecer as relações necessárias, no intuito de atingirem seus objetivos.
Isso fica muito claro nos personagens de Leviatã, sendo a Igreja talvez a mais poderosa das instituições, pois, para além do poder, ela transmite de forma muito eficaz e sutil os seus valores, e sabe manipular e alienar seus súditos, na medida necessária, para atingir seus objetivos particulares. E, assim, também acaba consolidando crenças e práticas de vida que não condizem mais com a sociedade do século XXI, a exemplo do próprio papel da mulher e do modelo de família que se propõe ser o “correto”. Lembre que, apesar das diversas instituições religiosas existirem na URSS, elas eram suplantadas pelo poder pesado do Estado e sua ideologia, que  não permitia a penetração das doutrinas no aparato estatal. Tal característica de imposição é algo ainda mais antigo que a própria União Soviética. É proveniente de séculos de czarismo, o que nos faz retornar a formação do Estado russo, que foi construído com alguma semelhança aos de Portugal, da Espanha e tantos outros, que tiveram como base a conquista, a anexação do território e a imposição dos costumes e da fé aos povos conquistados. Esta característica foi uma das chaves que aqueles primeiros idealistas soviéticos tinham o objetivo de, aos poucos, eliminar da mentalidade russa. Foram até bem sucedidos, se considerarmos que eles levaram adiante estas transformações em um período histórico que conheceu duas Guerras Mundiais e a Guerra Fria.
O propósito era que a imposição fosse aos poucos substituída pela ideia de que as culturas, respeitando cada uma as suas características próprias, possam viver em uma unidade, já que o lema comum era buscar ascensão social e igualdades materiais e de poder. Certamente, que se trata de uma ideologia, ou Utopia como qualquer outra e que foi suplantada pelos valores desse atual sistema, que tem muito do modo ocidental de ser. Este faz com que a identidade regional dos povos aos poucos seja perdida e promove a brutalidade dos governos, que acabam por apresentar, na realidade, os mesmo problemas, em sua maioria.
Em outras palavras, um Estado que parece contradizer-se, pois ao mesmo que se sobrepõe ao indivíduo, ele almeja proteger os seus direitos. Ora, isto logo se torna claro quando se percebe que a formação de valores que se defende é novamente: o mais forte deve vencer o mais fraco. E, se não bastasse, é parte de uma competição que se diz honesta e que as armas para vencê-la são a notoriedade e o poder de influencia de corações e mentes. 
Não é à toa que hoje o ser célebre, os casamentos relâmpagos, a vida líquida como diria Bauman, são características que infelizmente irão fazer parte também da descrição da nossa sociedade pelas gerações futuras. Afinal, alguém que sai de casa para falar da vida privada e que faz da sua vida pessoal um claro negócio, algo que se chama de marketing pessoal, é tão doente e individualista como o personagem prefeito de Leviatã, Vadim, que apenas busca a consolidação do próprio poder na região, custe o que custar.  Como também é o da Igreja Ortodoxa que almeja ser a fé única, em uma sociedade tão plural culturalmente falando, como a russa. Todo este cenário de concorrência é um absurdo que leva a autodestruição e propaga um sentimento de fraqueza, impotência e submissão total.
Diferentemente da esquerda que é muito crítica com ela mesma, a linha liberal preponderante tem, na maioria de seus seguidores, dificuldade em criticar os valores daquilo que defende. Afinal, o capital também matou muitos, milhares e continua a fazê-lo. Ainda pior, é capaz de, como fã da causa liberal, usar a mídia para preconizar de que não há alternativa e que este sistema, apesar de imperfeito, é o melhor e assim devemos aceitá-lo. E ninguém parece discordar! Como se todos estivessem exaustos de lutar por causas. Enfim, ainda me pergunto: e se esta pessoa conformada tivesse sua casa destruída, como o personagem Kolia, em Leviatã? Estamos em eterna disputa ideológica, que nunca acabará. Pois o homem é um ser pensante e que vive em sociedade. Portanto, as ideias se ajustam e se renovam nos diferentes períodos históricos, sendo de uma forma nos tempos de minha madrinha, que fez parte da geração da Segunda Guerra Mundial, e de outra nos tempos atuais.
Mas sua essência é a mesma, a diferença é que a geração dela poderia argumentar sobre a existência de alternativas civilizacionais possíveis e forma de pensar e agir distintas, já que ela viajou o mundo inteiro. Eu, comecei a viajar ainda mais jovem, porém, cada vez que viajo e vivo mais, percebo que tudo parece mais do mesmo. Afinal, as marcas são as mesmas em qualquer lugar do mundo, elas têm um poder, vinculado aos Estados, que só um Kolia da vida, com seu romantismo ideológico de mudança, mais parecido com épocas passadas, ousaria combater. De quando ainda existia o grito de guerra: “Trabalhadores, uni-vos!”, e não o “quem quer ser um milionário?”. Portanto, nosso fatídico personagem tem pernas e braços muito curtos, é impotente e, por isso, bebe para esquecer o fracasso. Kolia não é apenas russo, é universal.
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