quarta-feira, 4 de março de 2015

TCHÉKHOV – O JARDIM DAS CEREJEIRAS


TCHÉKHOV – O JARDIM DAS CEREJEIRAS

Assim como para o Brasil, o século XIX para a Rússia foi um século de muitas transformações que, pode-se dizer, terminou apenas em 1917 com a Revolução. (Às vezes acontece isso, de um século avançar sobre o outro, ou também o oposto, ser encurtado pelo próximo que já inicia prematuramente. A história e a vida não seguem exatamente os calendários criados pelos homens).
O “ottocento” russo foi um período ainda do explendor da nobreza, de riqueza, dos teatros e dos cafés lotados, dos passeios na Névski, dos grandes concertos e das grandes óperas, do florescimento de São Petersburgo e de Moscou. E foi também um século de gigantes; de Dostoiévski, Púschikin, Tolstói e Gogol na literatura, de Tchaikóvski, Mussorgski e Glinka na música, entre tantos, tantos outros... De Diaghilev, Kandinski, Chagal, Block que adentraram o século XX; da fundação da revista “Mir Skustva” (Mundo das Artes) e do Teatro de Arte de Moscou, de Stanislávski.
Foi também o século da Guerra da Criméia, das reformas legislativas, do judiciário e do exército. Foi também o século da “Grande Guerra Patriótica” (1812) quando os russos vencem Napoleão que havia invadido o seu território, episódio epicamente retratado na grande obra de Tolstói “Guerra e Paz” (Vainá e Mir). Sim, na língua russa a palavra “MIR” significa PAZ e simultaneamente MUNDO.
Em 1861 os servos são libertados (no Brasil os escravos são libertados em 1888), o que de certa forma foi um golpe fatal à nobreza tradicional czarista. O país se urbaniza, muitos camponeses vão para as grandes cidades, os comerciantes se fortalecem e a indústria também. Surgem diversos bancos e o capital estrangeiro começa a aparecer em abundância.
O velho modo de vida russo, camponês e arcaico começa a ser suplantado por um modo novo, urbano, arrivista, cosmopolita, em outras palavras, capitalista. E começam também a surgir as teorias socialistas de Marx, Bakunin, Lênin, Plekhanov...
A Rússia era (e ainda é) o maior país do mundo, indo da Finlândia e Polônia ao Alaska e (curioso) chegando até a Califórnia nos Estados Unidos, e passa a “contar” no tabuleiro geopolítico europeu.

O Jardim das Cerejeiras:
Na peça “O Jardim das Cerejeiras” Tchékhov retrata justamente o final do século XIX, onde essas transformações estão no clímax, através do drama de uma família aristocrática afundada em dívidas que acaba perdendo em leilão a sua propriedade rural (um cerejal) que por muitas décadas foi o símbolo de seu prestígio e nobreza;
A propriedade viu passarem por ela gerações, grandes bailes, saraus, festas, romances e casamentos. O cerejal, mais que um pomar de cerejeiras destinado a produção e ao comércio representava uma inesgotável fonte de riqueza e fazia parte do imaginário daquela família (assim como os casarões das fazendas de café do século XIX brasileiro).
A peça de Tchékhov e seus personagens retratam este período de transição: há o comerciante recém enriquecido, o antigo servo libertado, velho e fiel; a família decadente, empobrecida e instável, o jovem urbano e ambicioso, o burocrata, as amas, as jovens sonhadoras, entre outros.
Apesar do contexto, não é uma peça histórica no sentido lato, (não é um documentário histórico), mas é uma história que reflete dramas humanos de um período de transformações e incertezas. Mal sabiam o que os esperava no século XX.
O Jardim das Cerejeiras teve sua primeira montagem em 1904 pelo iluminado Stanislávski e o seu Teatro de Artes de Moscou e foi um grande sucesso.
Por que “Jardim das Cerejeiras” e não simplesmente “Cerejal”? A explicação está justamente na sutileza, no simbolismo do “Jardim” que propõe algo mais que uma plantação para o comércio; remete a um tempo de idílio, de felicidade, até de ingenuidade.
A peça encerra com a família de malas prontas despedindo-se da casa grande, das suas paredes, das suas memórias, da sua nobreza, ao mesmo tempo em que ao fundo já se ouve o som dos machados sobre o cerejal onde será construída uma vila de veraneio, com cabanas de aluguel para as novas classes russas.
Tchékhov e Stanislávski, uma dupla que marcou o teatro russo e mundial.

Anton Tchékhov – O Jardim das Cerejeiras
Tradução de Millôr Fernandes
LPM Pocket