quinta-feira, 9 de abril de 2020

No Degrau de Ouro - Contos


NO DEGRAU DE OURO


Acabo de terminar de ler “No Degrau de Ouro” da autora russa Tatiana Tolstaya (1951).

Tolstaya (feminino de Tolstói), nasceu na Rússia Soviética em 1951, na cidade de Leningrado, hoje São Petersburgo. É descendente distante de dois famosos escritores russos: Lev Tolstói (1828-1910), um dos maiores escritores da língua russa e um dos maiores do mundo, autor de “Ana Karenina” e do épico “Guerra e Paz” e de Aleksei Tolstói (1883-1945), seu avô paterno.

“No Degrau de Ouro” é o nome do livro e o nome também de um dos contos.
Escrever sobre um livro de contos é um desafio por si só. Fica a interrogação: escrever sobre cada conto individualmente apresentando-os ou analisar a obra como um todo?

Ler Tatyana e seu Degrau de Ouro não é difícil. É um pouco estranho. O difícil é escrever sobre o lido. Seus contos são um tanto inclassificáveis, atemporais, embora se reconheça um tempo neles, tipo União Soviética pós-guerra e pré-perestroika e embora sejam também universais no sentido da geografia.

Poderiam ser ambientados em qualquer subúrbio deprimido de qualquer grande cidade do mundo.

Mas transcorrem nas ruas e apartamentos de Moscou e Leningrado. Às vezes no interior e no passado um pouco mais longínquo.

Escrever sobre o indescritível também é um desafio.

“No degrau de ouro” contém doze contos. Cada um deles é um todo. Mas ao findar o livro percebe-se uma unidade um tanto impressionante. Seu ponto forte, de fato, são as personagens, sua absoluta previsibilidade e, ao mesmo tempo, sua profunda complexidade humana.

Os enredos dos contos vão da mesma forma, são absolutamente previsíveis e ao mesmo tempo com uma profunda complexidade que ao final surpreende.

No decorrer da história a previsibilidade das personagens vai se emaranhando com a previsibilidade do enredo e quando você se dá conta o que está emaranhada é a complexidade da personagem com a complexidade do enredo.

Ao terminar um conto você está em silêncio, meio confuso, sem entender direito o que aconteceu. Sem querer partir para o próximo, porque parece que aquele conto findo continua dentro de você e aquele personagem é seu amigo íntimo.

Esqueça Tchekov e seus cenários bucólicos e personagens concretos, reais. Esqueça a profundidade exaustivamente construída por Dostoiévski. Nos contos de Tolstaya me parece surgir de quando em quando a figura de Gogol numa cena patética e até meio surreal. As vezes um salto no tempo para mostrar que um dia, uma vez, houve vida, ou poderia ter havido, naquele vazio.

Em algumas cenas a autora puxa a corda num golpe rápido e repõe as coisas. Dá um giro e segue em frente. É engraçado, te deixa meio patético, surpreende e não volta para explicar. Ao final talvez se entenda.

Parece que a unidade dos contos é essa. Personagens que refletem, ou vivem mesmo sem refletir, o vazio de suas existências. O conto termina, o ônibus segue, levando em seu interior um ninguém para lugar nenhum. São homens que poderiam ter sido outra coisa e num determinado momento de suas vidas escolheram sem pensar. E agora não há mais volta. São mulheres que não tiveram chance nenhuma. Que quase amaram um dia. São crianças que foram órfãos, da guerra e da vida. Mentirosos, inocentes, deprimidos, anônimos.

BEM ME QUER – MAL ME QUER
“Na pracinha, que Marivana chamava de “bulevar”, pálidas meninas leningradenses cavoucam na escurecida areia outonal, escutando as conversas dos adultos. Marivana, tendo feito rápida amizade com alguma velhota de chapeuzinho, tira da bolsa fotografias velhas e duras: ela e o tio encostados ao piano, e atrás uma cachoeira...”

RIO OKERVIL
Um homem velho e solitário, fã de uma cantora famosa do passado finalmente decide ir conhece-la. Pega um ônibus e vai à sua casa no outro lado da cidade. Se decepciona. Ela morre para ele, como uma velha gorda e decadente.

SHURA QUERIDA
Mulher visita velha de 84 anos – que deixou um amor e a vida no passado. Morre no final.
“O que posso fazer com tudo isso? Voltar-me e ir embora. Calor. O vento tange a poeira. E Alexandra Ernestovna, a Shura querida, real como uma miragem, coroada de frutas de madeira, flutua sorrindo pela trêmula viela, para atrás da esquina, para o sul, para o incrivelmente distante radioso sul, para a gare perdida, flutua, derrete-se, e se dissolve no calor do meio-dia.”

NO DEGRAU DE OURO
“No princípio era o jardim. A infância era o jardim. Sem começo nem fim, sem limites ou cercas, de farfalhares e rumores, dourado ao sol, verde-claro à sombra, de mil pavimentos, desde as urzes até o cume dos pinheiros; ao sul, o poço com os sapos; ao norte, as rosas brancas e os cogumelos...”

FOGO E POEIRA
Num apartamento, Rima, Pipka, Fedia, Danilo. O futuro não chegava. A felicidade não chegava. As mudanças não aconteciam. E Rima revia onde errou...
“Os visitantes me invejam, sim, meus queridos, invejem-me, uma felicidade enorme me aguarda no futuro, qual é ela, eu não digo, eu mesma não sei, só que as vozes me sussurram: espera, espera...”

UMA FOLHA EM BRANCO
Um homem maduro. Angustiado. Tem mulher. Tem amante, que no início o faz pensar que vive, mas logo cansa. Um filho doente. Um amigo. Alguém para quem pode contar sua angustia. Sugere uma operação para tirar a angústia da vida.

“- Eu não entendo – dizia o amigo – por que você cria tamanho caso? Todo mundo tem mais ou menos os mesmos problemas, o que é que tem isso? Vamos vivendo conforme dá.
- Mas vê se entende – Ignatiev mostrava o peito – é o Vivente, o que está vivo, ele dói!
- Que bobo você é – o amigo palitava os dentes com um fósforo. – Justo porque está vivo é que dói. O que é que você queria?


Julio Pujol
Abril de 2020

Tolstaya, Tatiana. No Degrau de Ouro (Contos). Trad. Tatiana Belinsky. Cia. Das Letras. São Paulo. 1990.