quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Crime e Castigo – um livro difícil.



Crime e Castigo – um livro difícil. (Devo escrever sobre isso)
Julio Pujol

Dostoiévski é difícil. E é.
Algumas vezes a grandeza está na simplicidade, noutras na complexidade. Em Dostoiévski vale o segundo caso.
Quando pela primeira vez uma colega falou-me do livro “Crime e Castigo” pensei que deveria lê-lo. Sabe quando a gente fica com aquela sensação de que “todo mundo já leu esse livro, menos eu”? Foi mais ou menos isso.
Ela me disse que se tratava de um livro que contava a história de um rapaz que cometeu um crime (matou uma velha agiota) e depois ficou angustiado temendo ser descoberto e ao mesmo tempo querendo se entregar. Era mais ou menos o caso do crime perfeito. Fiquei curioso. Achei uma boa história.
Tempos depois, quando fui ler o livro não vi nada disso. Tudo era uma outra coisa.
O primeiro Dostoiévski que li foi “Memórias da Casa dos Mortos”; um relato dos anos em que o autor passou na Sibéria, em uma prisão czarista, na realidade um exílio interno. Um livro concreto, falando de fatos e personagens concretos, autobiográfico. Já prenunciava um olhar profundo sobre a vida e seus seres.
Passados mais de vinte anos dessa leitura, ainda são inesquecíveis para mim as cenas “do banho” (na Rússia ainda existem os banhos públicos, coletivos, até hoje) e a cena “do teatro”. Geniais.
Para quem se interessa pela cultura Russa, ou para quem gosta de um bom livro, ou para quem se interessa pelo tema das “instituições totais” vale a pena a leitura. Ou mesmo para poder comparar as prisões czaristas (onde estiveram Lênin, Stalin, Trotski) com os relatos de Soljenitsin sobre as prisões e os exílios do tempo do socialismo, infinitamente mais cruéis.
Mas voltando ao nosso “Crime e Castigo”, é fato que existe um jovem estudante pobre, Raskólnikov, que tem uma mãe e uma irmã, Dúnia. Que mata uma velha agiota e sua irmã Lisaveta para roubá-las. Que esse jovem tem um amigo e colega, Razúmikin. Que há também a figura do investigador Porfiri, que parece saber, e sabe, que Raskólnikov cometeu o crime. E tem também Sônia, uma moça de enorme sensibilidade que se prostitui para alimentar a família miserável e é a única que compreende Raskólnicov.
Dito isso, o autor nos abre um mundo; o laboratório da mente humana, de uma mente angustiada, que é marca dos escritos de Dostoiévski. Uma mente (um homem) pressionada pelo seu tempo. Um tempo de transição, a segunda metade do século XIX, quando o mundo se urbanizava, a indústria se consolidava, os movimentos sociais nasciam, a comunicação se ampliava entre os homens e seus saberes. (Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821 e morreu em São Petersburgo em 1881).
É como se fosse um mundo que se preparava para ser algo; Para ser mundo.
A sensibilidade do gênio (assim como a dos poetas) centrou seu olhar não nas máquinas, nas ideologias e no progresso, mas no interno do homem, na sua mente, no seu coração, nos seus valores, nos seus medos, nas suas angústias e nas suas fés.
E a cidade em que Dostoiévski decidiu viver grande parte da sua vida, São Petersburgo, era o cenário perfeito. Uma cidade construída de modo planejado (quem sabe artificial), numa região inóspita, pantanosa, gelada em grande parte do ano, sombria, com gente que foi se enraizando aos poucos, construindo uma identidade urbana meio europeia, num país ainda meio arcaico. (hoje São Petersburgo é uma outra coisa). Uma cidade amada e odiada por Dostoiévski. E o autor cai no meio dela com seus personagens, seja nos dias sombrios, seja nas noites brancas.
Em “Crime e Castigo”, paralelo ao enredo, que de fato é simples, o autor vai nos levando para o íntimo dos personagens, mas sem analisá-los, apenas expondo suas reações, suas reflexões, seus medos e seus valores. Nos faz ficar pensando, e no entanto não nos dá nenhuma resposta. Às vezes você pensa: “que chato esse Raskolnikóv, um infantil”; outras vezes você percebe uma reflexão profunda, existencial. No fundo, para mim, é indecifrável. Talvez somente Sonia o entenda.
Também para suas reflexões filosóficas e existências (tão facilitadas pela atmosfera russa do século XIX) o autor parece não nos dar respostas, embora em vários momentos seja bastante assertivo. Mas sua assertividade, convincente, ao término nos deixa em dúvida se ele realmente afirma algo e acredita, ou se está nos dizendo exatamente o contrário. E todas essas reflexões e mergulhos no íntimo humano, feitos com maestria, são anteriores a Freud e a sua psicanálise. E óbvio, com outra linguagem.
O que num primeiro momento pode parecer uma reflexão sobre os valores morais e existenciais do homem russo, sua angústia frente à vida, descortinados com imensa sensibilidade, na realidade é um pouco da consciência do mundo, portanto universal, não russa, exposta.
E todos estes elementos estão também, enfadonhamente, em outras obras como “Noites Brancas”, “Notas do Subsolo”, “O Idiota” e finalmente em “Irmãos Karamázov”, um livro definitivo.
Ler Dostoiévski é entrar no laboratório do gênio. Sempre um desafio.

“Por que, diabo, me preocupo eu desta maneira e sofro todas estas inquietações por causa de uma bagatela?, pensou, sorrindo estranhamente. Hum! Sim, é isso, está tudo ao alcance do homem e tudo lhe vem parar às mãos, simplesmente o medo... Isto é um axioma... É curioso: de que será que as pessoas tem mais medo?...”

“Os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas...”

“De maneira geral, indivíduos com ideias novas, inclusivamente de algum modo capazes de dizerem algo de novo, nascem pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha.”

“Então adivinhei Sônia – continuou com entusiasmo – que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer”.

“Será difícil encontrar outra terra onde atuem sobre a alma humana influxos tão tenebrosos, tão intensos e tão estranhos como em Petersburgo. Talvez seja a ação do clima! Mas, como é o centro administrativo do país, o seu caráter deve refletir-se na Rússia inteira.”

“Os russos, de maneira geral, são gente de vistas amplas, como a sua terra, e muito propensos para o fantástico, para o desordenado; mas infelizmente, trata-se de uma amplitude sem generalidade especial.”

“Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa... mas a nossa presente narrativa termina aqui.”







quinta-feira, 3 de setembro de 2015

HERMITAGE; UM MUSEU ÀS MARGENS DO RIO.

HERMITAGE: um museu às margens do rio.
(Julio Pujol)
Em recente artigo neste blog escrevi sobre a Galeria Tretiakov, de Moscou, dedicada a reunir e conservar obras de arte tipicamente russas. Andar pelas suas salas é fazer uma viagem pela história e cultura daquele imenso país.
A Tretiakov cumpre o seu papel também porque reúne uma rica mostra do que os russos produziram de belo para o mundo. Ali se vê claramente o quanto uma cultura local, nacional, pode ser universal; o quanto o belo com suas diversas nuances é universal.
No Museu Hermitage, de São Petersburgo, têm-se de certa forma o oposto: seus criadores (os czares Pedro I, Isabel Petrovna, Catarina II, Nicolau, etc.) trouxeram o belo universal, de diversas culturas e tempos para dentro da Rússia.
O museu, um dos maiores e mais ricos do mundo, com suas mais de trezentas salas e com quase três milhões de peças, permite-nos apreciar um panorama da arte mundial (também um pouco daquela russa). Permite-nos viajar no tempo e no espaço.
Nele as obras de arte fundem-se com a beleza, suntuosidade e elegância (às vezes clássica, às vezes barroca e rococó) de suas salas e salões. Escadarias, mobiliário, decoração, arquitetura, mármores, jardins, o dourado das grandes portas, a luz que penetra pelas janelas e abre a visão do Neva, tudo é de uma beleza estupenda. Rio e museu também se fundem; um sonho.
Criado inicialmente, por Pedro, o grande, para ser a residência dos czares, na nova capital do Império Russo, e depois reconstruído por Isabel Petrovna o Palácio de Inverno (projetado pelo arquiteto italiano Rastrelli, em estilo Barroco) é o embrião do futuro Museu Hermitage.
Hoje o complexo do museu compõe-se do Palácio de Inverno, do Pequeno Hermitage (criado por Catarina II), do Velho (ou Grande) Hermitage, do Novo Hermitage e do Teatro do Hermitage.
O Hermitage ao longo da história resistiu a eventos muito difíceis: enchentes do Neva, incêndio, à Revolução de 1917, ao Stalinismo e mais recentemente ao cerco dos nazistas. Na Segunda Guerra os alemães cercaram São Petersburgo por novecentos dias. A ideia era conquistar a cidade pelos bombardeios, pela fome e pelo frio. Mais de três milhões de peterburguenses foram mortos.
As obras do Hermitage foram evacuadas para Ekaterimburgo, além dos Urais, na Sibéria, onde a guerra não chegou. Durante o cerco, apesar da fome e das bombas, as visitas ao Museu continuaram. Os guias mostravam as paredes vazias e apresentavam os quadros como se ainda estivessem lá. Era uma forma da arte também resistir à barbárie. O Museu carrega a mística de São Petersburgo, uma cidade que resiste.
 São Petersburgo foi uma cidade planejada e construída em 1703 para ser a capital do Império, às margens do rio Neva, que desemboca no mar Báltico, e dali liga a Rússia a toda Europa.  Pedro I primeiro pensou São Petersburgo como uma porta (ou janela) para a Europa.
As Obras
De fato o Hermitage nasce da vontade e decisão da czarina Catarina II que manda construir, ao lado do Palácio de Inverno, um “Eremitério”, ou espaço para contemplação e reflexão, onde ela poderia expor e apreciar suas obras de arte. Eventualmente Catarina convidava seus próximos a visitarem seu “Eremitério”. O silêncio e a formalidade eram a regra. Aos poucos o espaço foi sendo aberto à visitação de estudantes de arte. Dia 7 de dezembro (dia de Santa Catarina) é considerada a data de aniversário do Museu.
Das primeiras aquisições de Catarina, principalmente na Europa, nasce o acervo do Museu. Como não era uma especialista em arte, buscou ajuda de conhecedores, entre eles Diderot e Grimm. Em 1796 quando falece Catarina I o Hermitage já contava com quatro mil obras. Em 1805 torna-se um museu público, embora ainda Imperial.
Seu acervo só cresceu, embora em alguns períodos algumas obras foram vendidas e, depois da Revolução, o Hermitage abasteceu vários museus do interior da Rússia.
Difícil enumerar ou falar hoje das importantes obras que existem lá. Como falei antes, são quase três milhões. Claro, nem todas são quadros. Estão lá objetos arqueológicos dos Citas, primeiros povos a ocuparem o território russo, dos gregos, dos egípcios, dos africanos. Prataria francesa, cerâmica inglesa e italiana, mobiliário e vestimentas dos czares russos, bustos romanos, arte chinesa, e tanto mais.
Mas o que torna o Hermitage uma referência e um dos principais museus do mundo sem dúvida é a coleção de pinturas. E esculturas. Ali se pode ver um panorama da arte europeia do século XV ao século XX. Há preciosidades como obras de Michelangelo, Rafael, Leonardo da Vinci e de vários do Renascimento Italiano.
O museu possui uma das maiores (ou a maior) coleções da Arte Holandesa e Flamenga do período Barroco do mundo. Um grande acervo do classicismo e do expressionismo francês. Obras do retratismo inglês e uma grande coleção também dos espanhóis do século XVI.
Não dá para citar todos, mas para termos noção da grandeza do Hermitage podemos falar de quadros dos italianos Ticiano, Tintoreto, Veronese; “O Tocador de Alaúde” de Caravaggio, “Judite” de Giorgione... Depois tem os espanhóis, holandeses, alemães, ingleses, franceses. “São Pedro e São Paulo” de El Greco; “Perseu e Andrômeda” de Rubens. Muitos Rembrandt como “A Volta do Filho Pródigo”, Hubert Robert (a maior coleção do mundo).
Tem Francisco de Goya, Monet, Rrenoir, Van Gogh. Sim, tem Van Gogh. Um grande acervo, luminoso, de Gauguin. Tem Cézanne, Picasso, Kandinsky e Matisse. E vou parando por aqui para alguns breves comentários pessoais.
Estive apenas uma vez no Hermitage.





. Uns dois dias e sei que precisava muito mais. Na realidade o Hermitage é infinito se a cada vez também nosso olhar é novo. Vale uma viagem a São Petersburgo. O problema é que também a cidade é uma obra de arte e demanda muitos dias e muitos olhares. Escreverei.
Para mim, de apaixonar, no Hermitage e cito apenas algumas impressões e sensações está em primeiro lugar (para um professor de história) poder subir as escadarias do Palácio de Inverno por onde os Revolucionários de Lênin subiram naquele outubro de 1917 e mudaram a história da humanidade no século XX. E onde também Eisenstein filmou o seu famoso filme “Outubro”, para comemorar os dez anos daquela Revolução.
As esculturas de Rodin, Falconet e Canova são indizíveis. Só o silêncio pode explica-las. Na linguagem popular: “só vendo”. E é isso: só vendo. “As Três Graças” de Canova é absolutamente espiritual, porque é possível arrancar o espiritual da pedra. E Canova conseguiu. É Sublime. Só essa peça vale uma viagem à Rússia.
Mexeu comigo estar diante de “A Dança” e de “A Música” de Matisse. Dois imensos quadros de 2,60m por 3,90m. Impactante. Não sabia que estavam lá, e quando entro em uma sala eles se apresentam enormes. Se pode dançar junto. E estar diante de um Van Gogh também te tira as palavras. As cores de Paul Gauguin me seduziram. Na realidade cada sala te acolhe como se ela fosse a mais exuberante. Até você passar para a próxima.
Bem, não se pode escrever tudo, então vou parando.
Pra encerrar, três referências que me ajudaram neste texto:
O álbum-roteiro “Ermitage” da Ed. P-2 de São Petersburgo, 2006;
e “Museu Hermitage” – Coleção Folha – Grandes Museus do Mundo – 16, 2009 da Ed. Mediafashion. RJ.

O filme “Arca Russa” de Alexander Sokurov, 2002, filmado todo dentro do Museu em uma tomada só, que mostra o quanto está ali um pouco, ou muito, da alma Russa.