Ainda com os cortes orçamentários sucessivos que o Ministério das Relações Exteriores vem sofrendo, uma imagem sorridente da presidente ilustra a parede verde atrás da mesa do embaixador brasileiro em Moscou.
Na função desde janeiro deste ano, Antonio José Vallim Guerreiro parece refletir os princípios do Itamaraty a cada declaração. Do não envolvimento em disputas internacionais à resolução pacífica de contendas.
"O governo brasileiro não está aqui para ocupar espaço de quem quer que seja", diz à Gazeta Russa, referindo-se à substituição das importações arquitetada por Moscou que rendeu grandes manchetes nos noticiários brasileiros.
Sobre um possível boicote à Rússia na cúpula do G-20, a realizar-se em novembro na Austrália, ele diz ainda que "ninguém é dono" do grupo.
Ex-representante permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento em Genebra (2012-2013), chefe da missão junto à agência Internacional de Energia Atômica em Viena (2006-2012), entre outros cargos diplomáticos ocupados desde 1979, Guerreiro concedeu entrevista exclusiva à Gazeta Russa em Moscou:
GR: O senhor foi enviado como embaixador do Brasil em Moscou em janeiro deste ano. O senhor poderia fazer um balanço deste período na função?
Tem sido um desafio muito promissor. Nunca tinha morado na Rússia, já tinha estado aqui por períodos curtos para realização de consultas com autoridades russas sobre temas de que eu tratava antes, relacionados às Nações Unidas, à questão nuclear, e sempre tive a melhor impressão dos interlocutores com quem me encontrei aqui em Moscou.
Desde janeiro, quando cheguei, a situação tem sido não só desafiadora, mas estimulante, do ponto de vista profissional e pessoal também.
O Brasil e a Rússia têm relações muito boas que se têm fortalecido ao longo dos anos. São países grandes, com grandes populações, têm uma economia mais ou menos do mesmo tamanho, e as oportunidades de intercâmbio em várias áreas são enormes. Tanto uma parte como a outra tem que saber aproveitar essas oportunidades. Isso tem sido feito na área cultural, comercial e em várias outras.
Neste ano, tivemos em Fortaleza a cúpula do grupo Brics, que inclui Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.

"Nós, países do Brics, não nos definimos como contrários a ninguém ou a nada".

A cúpula foi extremamente útil e talvez tenha sido a que rendeu mais resultados concretos, na medida em que houve a aprovação do estatuto do banco do desenvolvimento do Brics. Isso facilitará o intercâmbio e a realização de projetos conjuntos com os demais países.
Uma coisa que acho importante assinalar é que nós, países do Brics, não nos definimos como contrários a ninguém ou a nada. Nós queremos incorporar, nós queremos adicionar, não queremos destruir ou abolir. Nós procuramos reformas onde elas são necessárias, mudanças onde elas são necessárias, de modo a refletir as aspirações de um número maior de países.
Durante esse período, tive o grande prazer de participar de forma mais ativa dos dias do Brasil na Rússia, com uma série de eventos em Moscou e em São Peterburgo, ligados a cultura, música, teatro, cinema e um festival de cinema brasileiro que já se realiza aqui pela sétima vez.
Pude testemunhar o que, para mim, foi uma grande surpresa: o grande interesse que há neste país pelo Brasil e pela cultura brasileira. Há grandes similaridades entre os países, ou pelo menos interesse mútuo muito grande.
No Brasil as pessoas fazem uma ideia da Rússia como sendo apenas um país frio, e acho importante que os brasileiros venham aqui para se darem conta da riqueza cultural e de civilização deste país.
GR: Recentemente, foram impostas sanções por países desenvolvidos a organizações e pessoas diversas na Rússia. Como o Brasil vê a ideia da instauração de sanções econômicas com fins de pressionar politicamente um Estado soberano?
O Brasil, em princípio, não considera a imposição de sanções o melhor dos recursos para a obtenção de soluções pacíficas para controvérsias internacionais.
O Brasil sempre defendeu que uma solução pacífica para controvérsias internacionais deve dar-se por meio da negociação, por meio do envolvimento diplomático, e não por meio do recurso a sanções, sejam elas econômicas, militares, comerciais. Portanto, por definição, o Brasil prefere caminhos alternativos às sanções.
Evidentemente, nós temos uma posição muito clara de que quem tem autoridade para impor sanções é o Conselho de Segurança das Nações Unidas, de acordo com a própria carta das ONU.
GR: Também já muito se falou sobre as possibilidades que as respostas de Moscou às sanções irão abrir ao Brasil. Existe alguma perspectiva para quantificar o aumento desse volume de negócios?
Não, a resposta clara é não. Sem dúvida alguma, muitos dos produtos que a Rússia comprava de países dos quais deixará de comprar são produzidos também pelo Brasil e por outros países.
Os homens de negócios brasileiros já vêm trabalhando aqui na Rússia, e o Brasil fornece mais de 50% do mercado de carnes para o país. Os exportadores brasileiros já conhecem os importadores russos. Essa é uma questão comercial, e caberá aos homens de negócios dos dois países se entenderem e chegarem a transações que considerem úteis para ambos os lados.

"Nós queremos incorporar, nós queremos adicionar, não queremos destruir ou abolir. "

O governo brasileiro não está aqui para ocupar espaço de quem quer que seja. O governo brasileiro dará, como sempre deu, o apoio que puder, que é parte institucional do que nós temos que fazer.
Se haverá ou não um aumento das exportações do Brasil para a Rússia, eu não sei. Espero que haja, e espero que haja também um aumento das importações brasileiras oriundas da Rússia. O comércio tem que ser, tanto quanto possível, equilibrado, de duas mãos.
GR: Com o recente deterioramento das relações geopolíticas entre a Rússia e os países desenvolvidos, houve um apelo para que a Rússia não participasse da cúpula do G-20. Como o Brasil vê essa política de contenção voltada contra a Rússia?
Especulou-se, em meios de comunicação, que a Rússia não seria convidada para a cúpula do G-20, na Austrália. Nenhum país é dono do G-20. O G-20 é propriedade dos países que dele são membros. Não cabe a nenhum país deixar de convidar este ou aquele país por qualquer razão.
Até o momento presente, não tenho informação concreta quanto à participação da Rússia no G-20, mas minha suposição é que a Rússia estará presente no nível que considerar adequado na reunião da Austrália.
GR: A participação do Brasil e da Rússia no Brics tem afetado as relações políticas e econômicas bilaterais? Como?
Acho que sim, tem afetado e de forma muito positiva. O grupo Brics constitui uma plataforma dos seus cinco membros e ele sempre enseja a oportunidade para encontros periódicos.
O Brasil sediou, como eu disse, a última cúpula e a Rússia sediará a próxima, no ano que vem, em Ufá. E o presidente da República do Brasil, ou a presidente, não sei, virá certamente a essa cúpula.
Eu próprio não tinha ideia de que o grupo Brics cooperasse em tantas áreas específicas e concretas. Há encontros entre especialistas de cada um dos países dos Brics sobre as áreas mais diversas.
Por exemplo, na área de estatísticas nacionais, o nosso Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística participa de reuniões com seus contrapartes de outros países, há iniciativas na área cultural, fora as declarações políticas, que são muito importantes, o posicionamento na área econômica...
Devo confessar que me surpreendeu a intensidade de todos os contatos que são realizados no âmbito do Brics. E mais uma vez eu repito, nós não somos um grupo contrário a ninguém ou a nada.
GR: Apesar de a balança bilateral ter registrado alguma queda, especialistas consideram que nos últimos anos ocorre uma aproximação entre Brasil e Rússia. Quão verdadeira é essa assertiva e por que isso não influencia os indicadores econômicos?
O potencial de intercâmbio entre a Rússia e o Brasil é muito grande. Nós temos economias de mais de dois trilhões de dólares. Existe um potencial muito grande. Mas temos que reconhecer que, historicamente, o Brasil nunca esteve, ou esteve muito pouco no radar da Rússia, e vice-versa.
A intensificação das relações entre os dois países, o maior conhecimento mútuo, é algo relativamente recente. Historicamente, o Brasil esteve muito mais voltado para outras áreas do mundo. Aos poucos estamos descobrindo a Rússia e o potencial desses país, e a recíproca é absolutamente verdadeira.
A conjuntura internacional também contribui. Não vivemos em um mundo fechado, todos sofremos influências da conjuntura internacional. De modos diferentes, é preciso assinalar, mas a crise internacional teve efeitos também.
Mas que o potencial existe, ele existe, e tenho absoluta confiança no dinamismo dos empresários de cá e de lá, para maximizar as possibilidades e concretizar os negócios que forem necessários.
Acho, particularmente, que as relações não se devem resumir apenas a compra e venda de produtos e serviços. Temos uma agenda muito mais ampla e muito mais humana. O conhecimento das nossas personalidades facilita o comércio e como nos aproximarmos.
GR: O Brasil já aguardava há tempos um apoio de peso em seu pleito a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. Houve negociações para o apoio russo se realizar?
O apoio russo a que o Brasil tenha uma participação mais ativa dentro do conselho de segurança não é de hoje. E isso não se negocia.
O apoio russo está muito ligado ao perfil internacional do Brasil, um país que defende propostas e princípios da Carta das Nações Unidas, que defende a solução pacífica das controvérsias, o envolvimento diplomático para a solução das controvérsias, o princípio da autodeterminação.
O que leva a Rússia a nos apoiar em um papel mais proeminente no Conselho de Segurança das Nações Unidas é exatamente esse perfil que nós historicamente adotamos.