quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA




OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA

JULIO PUJOL


O título é lindo. Misterioso. A ideia é boa: traçar um panorama de um tempo e de um lugar. Mostrar homens, mulheres, interrogações. Andar por uma terra peculiar e forte. Pela estepe e pela taiga. Escrever uma obra significante.
“Os Frutos Selvagens da Sibéria” do grande poeta russo Evgueni Ievtuchenko é um livro que cumpre o proposto ao descrever paisagens da Rússia profunda, como a aridez escaldante de intermináveis estradas no meio da estepe ao verão ou o branco da taiga no inverno, com seu vento gelado que chicoteia o rosto do jovem Serioja e o gosto doce e azedo dos frutos selvagens.
O tempo soviético subjacente é uma onipresença. Lembra bastante “Os Filhos da Rua Arbat” de Anatoli Ribakov ao mostrar personagens comuns sobrevivendo e tentando ser algo nos tempos do império do sistema... soviético.
Nos “Filhos da Arbat” as paisagens são diferentes. A famosa rua Arbat, também misteriosa e mística, fica no centro de Moscou. Os dramas humanos ali vividos e escondidos são essencialmente urbanos. Mas não menos intensos.
Nos “Frutos da Sibéria” homens e mulheres urbanos e do campo se encontram e se escondem na solidão das imensidões.
Dir-se-ia um belo livro, porém falta nesta obra de Ievtuchenko, apesar das mais de quatrocentas páginas, um toque do épico de Tolstói e da absoluta profundidade dos heróis de Dostoiévski. E apesar de ser um relato de personagens reais, ou quase reais, falta também a crueza e o lirismo dos “Vagabundos” de Gorki.
O livro se constrói como o relato de várias vidas e experiências em sequência sem uma correlação dramática entre elas, como se fosse a compilação de algumas novelas em um tomo só, acrescidas de alguns fatos biográficos do autor (para quem leu sua “Autobiografia Precoce”).
Os personagens são absolutamente comuns em seu tempo. E seus dramas também: um amor, um filho, um encontro, um abandono, uma vida que passa, um arrependimento, uma melancolia... E o sistema que oprime e cadencia.
Os frutos são homens, são mulheres, são jovens idealistas, são tarefas históricas a cumprir, são os filhos da guerra e da paz. E são promessas de futuro em paisagens ermas, tristes e exuberantes. 
Ievtuchenko é sobretudo um poeta, mas não de prosa. Neste livro, seu grande poema é realmente o título “Os Frutos Selvagens da Sibéria”. A Sibéria em si é já um poema.
O verdadeiro grande poeta em prosa da literatura russa é Gorki. Noutro texto podemos discorrer sobre isso.
Neste livro, de 1981, ainda durante a Guerra Fria, Ievtuchenko faz um mosaico da inexorabilidade do progredir da vida naqueles tempos. Uma vida que escapa à vontade dos homens, embora construída por homens, pelas memórias apagadas de um velho, pelas esperanças otimistas de um jovem do Konsomol, pela resignação de uma mulher.
Um homem é marcado por seu tempo e por sua terra mesmo quando se deseja universal. Ievtuchenko busca ser universal neste livro, porém, de fato, “Os Frutos” é um livro profundamente russo; profundamente soviético. É a reflexão de um homem soviético sobre si mesmo e sobre seu povo. Seus personagens são russo-soviéticos.
É difícil encontrar o homem universal em seus personagens como em Dostoiévski e Tchekov onde, ao contrário, eles abundam.
O livro nos apresenta uma visão “do” mundo, mas nem tanto uma visão “de” mundo. É o olhar de um homem sobre um tempo. O seu tempo, o seu transcurso, as suas paisagens internas e externas.
“Os Frutos” tem qualidade, mas lhe falta intensidade. Falta-lhe aquele vigor que faz com que os homens tomem a história em suas mãos e a construam. E aí surgem os homens que cumprem suas tarefas históricas, que respondem ao seu tempo e se resignam a ele.
É um relato simples e despido da realidade. Quase uma crônica. E aí está o seu valor. Cabe também a um escritor observar, viver, e registrar o seu tempo e os personagens reais que nele habitam. E neste sentido a obra corresponde plenamente. Ao ler “Os Frutos” realmente fazemos uma viagem na qual o autor nos leva pela mão. Sem grandes juízos, sem dramas, sem grandes reflexões filosóficas.
Escrito entre 1973 e 1981, “Os Frutos Selvagens da Sibéria” passeiam pela memória do século através dos olhos e das palavras de seus personagens, homens e mulheres comuns que viveram um tempo excepcional e novo.
Os frutos são filhos dos revolucionários de 1917, são soldados da Segunda Guerra, a patriótica, de 1941; festejaram a vitória de 45; reconstruíam um país destruído ao mesmo tempo que festejavam o “homem novo” do socialismo. Homem que já nas décadas de 1950 e 1960 chegava ao espaço anunciando um futuro radiante para a pátria soviética e para toda a humanidade.
Mas os “frutos da Sibéria” eram profundamente humanos; humanos soviéticos, frutos, herdeiros e portadores de uma filosofia popular profunda que impregna a Rússia desde sempre, que nas suas entranhas virou “russismo”, algo que só para os russos tem um sentido traduzível.
Essa geração pós-guerra tinha muitas dúvidas e algumas certezas. A dor da morte, o heroísmo, a destruição e a reconstrução, cadenciam a alma russa do século vinte.
O nascimento do pensamento coletivista decretou o fim do indivíduo. Mas o indivíduo teima em sobreviver, meio silenciosamente, e observa as contradições de si mesmo e do seu tempo.
A sensibilidade do poeta Ievtuchenko capta e registra todos esses silêncios, todos as filosofias, inusitadas filosofias: “espantado de manter um tal discurso, no fundo da taiga siberiana, num barco que cheirava a pez, a lona de barraca úmida e a peixe seco...”
Talvez a Sibéria seja, no fundo, com seus frutos, a grande reserva da filosofia popular russa, o “russismo” que já deu muito a toda a humanidade.



OS FRUTOS SELVAGENS DA SIBÉRIA
434 p.
EVGUENI IEVTUCHENKO
RIO DE JANEIRO – NOVA FRONTEIRA, 1984


Outubro (ou nada) de 2017

sábado, 18 de fevereiro de 2017






Evgueni Evtuchenko – Autobiografia Precoce

Julio Pujol

A primeira verdadeira biografia que li na vida foi Eu (Eu mesmo) do poeta russo Wladimir Maikovski; uma autobiografia. Hoje acredito que uma verdadeira biografia só pode ser uma autobiografia.
Vinte anos depois termino de ler “Autobiografia Precoce” do também poeta russo Evgueni Evtuchenko. Novamente uma verdadeira biografia. Novamente uma autobiografia (embora precoce).
Nascido em julho de 1933 numa longínqua e pequena estação ferroviária da Sibéria chamada Zima, perto do Lago Baikal, Evtuchenko viveu os duros anos iniciais da Rússia Revolucionária. Cresceu no período stalinista e assistia as paradas militares na Praça Vermelha de Moscou ao mesmo tempo em que perdia os avós para a repressão política do regime. Eram tempos do “culto a personalidade” do líder.
Tinha oito anos quando, em 1941, os nazistas invadiram a Rússia. Viveu as durezas da guerra; viu jovens soldados siberianos casando-se e no dia seguinte partindo para o front. Pôde ver também os prisioneiros alemães derrotados desfilando humilhados pela Praça Vermelha. De todo este período ficou sua grande convicção pela paz.
Por opção e rebeldia saiu de casa e viveu nas ruas. Ali aprendeu a enfrentar e resolver sozinho os seus problemas. Aprendeu a superar o medo e vencer as situações mais difíceis. Assim aprendeu também a defender a sua poesia e as suas ideias no futuro.
“Do meu banco, debaixo do retrato de Stalin, o olhar fixo através da janela, eu sonhava em escapar para uma outra escola, a escola da grande cidade que cheira a neve e a cigarros, a gasolina dos automóveis e ao quente pirojki dos vendedores das ruas.”
Saiu a trabalhar como aprendiz numa expedição geológica nas estepes do Kazakistão. Ali aprimorou seu conhecimento sobre o homem, matéria-prima de sua poesia. Conviveu com camponeses, soldados, trabalhadores, técnicos. Descobriu a ternura feminina. Conheceu também homens maus que, de resto, não abalaram a sua convicção na humanidade.
“A partir desta data soube que não há nada no mundo de mais precioso que a inimitável, magnífica e comovedora ternura feminina. Soube que, de todos os valores duvidosos que o mundo reconhece, a ternura é a única que na realidade é eterna.”
Voltando à cidade, jogou futebol em Moscou e daí extraiu também muitas lições. Começou a publicar seus versos num jornal esportivo (o único que os aceitaram na época). Conheceu amigos como Tarassov e Barlas que o ajudaram a refletir sobre poesia. Entendeu que através da poesia precisava dizer algo, ou, ter algo a dizer.
Entrou em crise quando percebeu que seus poemas apesar de belos e bem construídos não diziam nada do que necessitava o homem real soviético do seu tempo.
 “Mas suponhamos que o mundo reconheça o seu talento. Vão esperar que você lhes diga coisas importantes. O que lhes dirá, então, você?” Perguntou o amigo Barlas.
Da crise começou a nascer o poeta maduro. Evgueni começa a fazer poemas mais intimistas, mais reais. Mas nos anos 1950 esse tipo de poesia não era bem vista pelas autoridades, que preferiam a arte exaltando o regime e as qualidades do homem soviético.
“Mas era necessário lutar para fazer triunfar essa concepção, pois nossos críticos literários defendiam na época, a teoria da ‘ausência de conflitos no mundo socialista’. Tentavam demonstrar que, na vida soviética, o conflito não podia mais existir entre os maus e os bons, mas somente entre os bons e os melhores.”
A crítica ao período stalinista nasce de forma contundente em sua obra. Evtuchenko acreditava nos valores do socialismo e do comunismo como valores elevados do humanismo, mas que foram distorcidos e degenerados por arrivistas de plantão.
“O stalinismo é a teoria pela qual os homens são vistos como simples engrenagens mecânicas de uma grande empresa industrial. Aplicada à vida essa teoria produziu resultados aterradores.”
“Assim, o aço tornou-se o herói principal de múltiplos romances. Outros foram consagrados à construção de casas ou ao semeio do trigo. Os seres humanos eram personagens secundários nessas obras. Aliás, nem mesmo viviam. Eram acessórios que permitiam valorizar melhor ‘o trabalho’”.
Em 1953 morre Stalin. E logo depois seus crimes são denunciados e vem a público. O país busca encontrar seu caminho. Muitos cidadãos entram em crise ao perceber que tinham dedicado suas vidas há um regime criminoso e opressor. Os problemas do país começam a aparecer. A Rússia questiona seu futuro.
“Começaram a chegar, dos longínquos campos de concentração siberianos, os primeiros reabilitados. Traziam consigo o relato comovedor de seus infortúnios pessoais e as provas, em medidas gigantescas, das injustiças cometidas na época stalinista.
O povo russo queria que lhe falassem de maneira franca e séria a respeito de suas perspectivas de vida. E ‘vida’, no seu entender e sentir, nunca se limitara a questões de comida e roupa. ‘Vida’, para os russos, é acima de tudo uma questão de futuro.”
Um novo tempo estava por nascer, uma Primavera Russa, segundo o autor. E novas responsabilidades se colocavam sobre os ombros dos poetas. E de Evtuchenko: compreender o tempo atual e jogar alguma luz sobre ele e sobre o futuro. Os poetas são muito considerados na Rússia, mesmo nos dias atuais.
“Para os leitores ocidentais, a afirmação pode parecer pretenciosa, mas é necessário compreender que o poeta, na Rússia, desempenha um papel diferente dos poetas de outros países. Na língua russa, a palavra poeta é quase sinônimo de combatente. Em nenhuma outra nação do mundo a poesia tem uma tradição tão ligada a política. Não é por acaso que os russos consideraram sempre seus poetas como guias espirituais, como os ‘depositários da verdade’.”
Compreende Evtuchenko seu dever de poeta e cidadão de falar para os jovens do futuro. Neste período conhece a poetiza Bella Akhmadulina, que logo vem a ser sua esposa. Bella faz parte de uma seleta de grandes poetizas russas como Akhmatova e Coetaeva.
Em 1955 organiza-se na Rússia o “Dia da Poesia” que se torna uma tradição no país. Milhares de pessoas lotam os salões e as praças para ouvir seus poetas. Nos anos seguintes, na década de 1960, Evtuchenko continua com sua missão de falar aos jovens; de lutar pela liberdade de expressão e pelo resgate dos valores humanistas do socialismo. Foi considerado no Ocidente um dissidente, mas sempre amou seu país e acreditou no futuro do socialismo.
Conheceu Pasternak, e relata no livro o seu encontro com este também grande da literatura e da poesia russa, autor de Doutro Jivago.
Lendo “Autobiografia Precoce”, (publicado pela primeira vez em 1963, quando o autor tinha então 30 anos) é possível compreender o itinerário do poeta até encontrar a sua grande poesia. Uma poesia marcada pela história de seu país, pelo seu povo, por sua terra, por suas imensidões. E é possível conhecer “por dentro” o sentimento do povo russo diante dos grandes acontecimentos protagonizados por ele mesmo no intenso século XX. Com uma sensibilidade de Poeta.
“Nós construímos sozinhos o nosso futuro. Privamo-nos de tudo, sofremos, cometemos erros, mas sozinhos o construímos.
Tenho orgulho de não ser um simples observador, mas de participar na luta heroica do meu povo pelo seu futuro. Penso sempre que tenho tudo diante de mim, assim como meu povo tem tudo diante dele.”
Li, de Evtuchenko, também, Ardabiola. Daí nasceu meu poema “Ardabiola Brasileira”. Sim, no Brasil também temos Ardabiolas.

Evtuchenko ainda vive.