quinta-feira, 31 de maio de 2018

Contos de Sebastopol


CONTOS DE SEBASTOPOL (Liev Tolstoi)
 Julio Pujol
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Sebastopol fica na Criméia. A Criméia fica no Mar Negro, no sul da Ucrânia. A Ucrânia fica no leste da Europa. A Criméia é Russa. Sebastopol é Russa. A Rússia nasceu na Ucrânia. A Ucrânia já foi Russa. São povos irmãos.
O Mar Negro divide, ou une, a Europa e a Ásia. Também ao sul está a Turquia. E na Idade Média estava o Império Bisantino. Bisâncio era a “segunda Roma”. O comércio do Oriente e do Ocidente passava por ali.
A região do Mar Negro, e nele a Criméia, é milenarmente um ponto de muitos interesses e muitas disputas. É também uma região multicultural.
A Criméia, vista de longe, é um mistério. Um local meio “Mil e uma Noites”. Um poema. Sebastopol é uma bela cidade fundada pelo Império Russo em 1783.
Tolstói é russo, de Isnaia Poliana (1828-1910). Junto com Dostoiévski e Puchkin é um dos maiores escritores russos e universais de todos os tempos. Escreveu o épico “Guerra e Paz” e o magistral “Anna Karenina”, além de inúmeros contos e novelas. É uma figura controversa. Mesmo para os russos. Nascido de uma família aristocrática e rica pregava a simplicidade da vida do camponês russo.
Tolstói era um homem que queria compreender a vida e o ser humano. E sua literatura reflete isso. É profundamente russa e ao mesmo tempo profundamente universal. Quando Tolstói busca a alma russa encontra, no fundo, a alma humana, o olhar humano, a dor humana, o silêncio humano.
Quando jovem vivia uma vida vazia e descompromissada como tantos de sua classe. Mas não encontrava satisfação naquele tipo de vida. Seu espírito era inquieto.
Decide ingressar no exército de seu país e parte para a guerra no Cáucaso (1851). Imaginava que em uma situação extrema e profundamente real poderia compreender melhor a subjetividade humana. Começa aí a nascer o escritor reflexivo.
Depois, entre 1854-1855 o oficial Liev Tolstói vive a realidade da Guerra da Criméia onde vê o heroísmo e o sofrimento cru de seu povo. Isso o toca de forma irrevogável.
A Criméia sempre foi uma zona de interesse dos russos que precisam de um acesso seguro ao Mediterrâneo e à Europa.
Nesta época a Criméia estava sob o domínio dos turcos. Os russos tentam retomá-la. Inglaterra e França ficam com os turcos para frear a expansão dos russos. Em Sebastopol os franceses atacam os russos. E é a resistência russa em Sebastopol que é matéria dos “Contos”.
Ao final a Rússia perde a guerra e muitos dos seus valorosos filhos.
Os Contos:
“Contos de Sebastopol” foram escritos ainda durante o período da guerra e publicados em São Petersburgo, então capital do Império Russo, com o conflito em curso.
Com seus relatos Tolstói funciona quase como um correspondente de guerra moderno, pois retratava para a sociedade russa as imagens explícitas da frente de batalha. A sociedade de então tinha uma imagem romantizada dos heróis russos condecorados e reconhecidos por seus serviços à Pátria.
“Contos de Sebastopol” é composto por três contos que descrevem três momentos diferentes da cidade e do conflito.
“Sebastopol em Dezembro”
No primeiro conto Tolstói nos apresenta uma cidade ainda iluminada, alegre, tocando a sua vida com uma certa normalidade. A guerra se concentrava nos bastiões de defesa da cidade. O movimento de soldados e oficiais provocava uma certa excitação à vida urbana. A paisagem, apesar da guerra, guardava seu encanto:
“A aurora apenas começa a tingir o horizonte sobre o monte Sapun; a superfície azul escura do mar, já desembaraçada da escuridão da noite, aguarda o primeiro raio de sol para cintilar seu brilho alegre. Da enseada o ar sobe frio e brumoso; não há neve, o solo está totalmente negro, mas o frio gélido matinal golpeia o rosto e estala sob os pés, e o rumor longínquo e incessante do mar, vez por outra perturbado pelos tiros retumbantes em Sebastopol, rompe o silêncio da manhã. Nas embarcações a ampulheta das oito horas bate surdamente.
Em Siévernaia as ocupações diurnas pouco a pouco começam a substituir a tranquilidade da noite...”
Mas a tranquilidade começa a desaparecer quando o autor nos leva para dentro do hospital que recebe os feridos da guerra. A descrição, através dos olhos de um oficial, do horror de jovens soldados mutilados, sofrendo e morrendo, de médicos e enfermeiras esgotados, do cheiro de sangue e de morte, nos mostram a crueza e a estupidez da guerra. E mesmo em meio a um cenário devastador é possível perceber o surgimento da nobreza e da coragem do homem russo. Do homem.
Do hospital o autor nos leva pela primeira vez à frente de batalha. Ali também a morte, e a convivência com ela, é uma rotina.
E encerra: “Por muito tempo essa epopeia de Sebastopol deixará na Rússia marcas grandiosas em que o herói é o povo russo”.
“Sebastopol em Maio”
Neste segundo conto, o autor apresenta uma Sebastopol já não tão alegre e segura de si. Uma Sebastopol já atingida pela guerra; preocupada.
Tolstói, através dos olhos do oficial Mikhailóv, mergulha de forma mais profunda na subjetividade humana e analisa sentimentos secretos como o medo, a vaidade, a honra, a cupidez, o heroísmo, a alegria, a indiferença, a dúvida...
Aos nossos olhos vai descortinando a alma humana diante da maior das adversidades: a derrota, a humilhação e a morte. Neste conto se abre todo o horror e toda a irracionalidade da guerra. Cristãos russos e cristãos franceses matando-se uns aos outros: “E a questão, não decidida pelos diplomatas, decide-se menos ainda pela pólvora e pelo sangue.”
“Das duas uma: ou a guerra é loucura ou as pessoas, por praticarem essa loucura, não são absolutamente seres racionais como costumamos pensar sabe-se lá por quê.”
Os franceses iniciam um violento ataque. Centenas de soldados vão morrendo e amontoando-se misturados aos destroços dos canhões e carroças.
Na trégua para recolher os corpos, russos e franceses ficam frente a frente: “E essas pessoas, cristãos que professam a mesma grande lei do amor e do sacrifício, olhando para o que fizeram, não cairão subitamente de joelhos arrependidas, ante Aquele que, tendo lhes dado a vida, colocou na alma de cada um, junto com o horror da morte, o amor ao bem e ao belo, nem se abraçarão como irmãos, vertendo lágrimas de júbilo e felicidade. Não!”
Diante da morte o homem quer encontrar um sentido para sua existência (ou para o fim dela). E esse sentido são valores: honra, camaradagem, amor à Pátria...
“O herói do meu conto, aquele que amo com todas as forças da minha alma, que tentei forjar em toda a sua beleza e que sempre foi, é e será belo – é a verdade.”

“Sebastopol em Agosto”
O tenente Kosieltsov regressa a frente de batalha depois de se recuperar de um ferimento e reencontra os antigos companheiros. Ao mesmo tempo também chega ao campo seu irmão mais novo, Valodia, que está se integrando às tropas.
Neste conto Tolstói descreve a queda de Sebastopol sob chuva de balas de canhão e a retirada dos soldados russos, derrotados e humilhados. E a sempre presente, morte. Os sonhos de glória transformam-se em desenfreada retirada. É a realidade da guerra.
“À saída da ponte quase todos os soldados tiravam o boné e persignavam-se. Mas a essas impressões sucedeu-se um sentimento penoso, mais pungente e profundo: algo semelhante a remorso, vergonha e cólera. Quase todo soldado, ao olhar deste lado de Siévernaia para a Sebastopol abandonada, suspirava com indizível amargura no coração e ameaçava os inimigos.”
“Contos de Sebastopol” é uma descrição da guerra e ao mesmo tempo da subjetividade humana diante de uma situação limite . É, de fato, um canto à paz. Mal podia imaginar Tolstói quantos infortúnios ainda estariam por atingir sua pátria no século seguintel.
Em 2018 penso na existência humana ao longo dos séculos e percebo que ainda somos primários; Do mesmo modo que avançamos em instituições, diplomacia, convivialidade, produzimos mais armas do que em qualquer outro período da história humana. Devíamos estar discutindo quantos arsenais destruir.
Tolstói nos ajuda a pensar o  quanto é sagrada a vida humana. O quanto é bela a vida; quanto podemos construir juntos. Poderíamos nos desafiar para compreender até que ponto a inteligência humana pode chegar.

Contos de Sebastopol
Liev Tolstói
Ed. Hedra. São Paulo, 2013. 160p






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